(Cuidado: Alerta de gatilho)
Achado 1
Dentro de mim e de você, do outro lado das nossas ruas, em outra cidade ou até em outros tempos, vive uma mulher e sua história que só se vê bem de muito perto.
Como um desdobramento, diante delas, me deparo comigo mesma, porque ela também pode ser professora, como eu, pode ser balconista de uma loja, caixa de supermercado, estudante do último ano do ensino médio, cobradora de ônibus... pode ser um desdobramento seu, pode ser que não…
Conheci (ou reconheci?) esta outra de mim que, como eu, ama os estudos e abraçou-os como fuga e salvação, como certeza e dúvida, como um solo firme sob os pés e, ao mesmo tempo, o terreno movediço de um longo processo de autoconhecimento. Por isso, foi até onde pôde, fez tudo que pôde.
A vida, disfarçada de esfinge sentenciava: “Decifra-me ou te devoro.” Essa mulher tinha mais fome que a esfinge. Fome de alma, fome de esperança, fome de resiliência. Por isso, devorou tudo que que pudesse ‘salvá-la’ do abismo. Aprendeu, estudou e ensinou a aprender. Fez tudo que a ajudasse a aperfeiçoar sua maneira de continuar aprendendo sobre si e sobre o mundo.
Ela era infeliz a seu modo. Mas, isso não acrescenta muita coisa, uma vez que, eu, você, nós mulheres, somos mais ou menos infelizes ao nosso modo, a exemplo do que as famílias o são, nossa irremediável origem e herança.
Hoje, quando elaboro este pensamento, tomo distância, ponho de lado, o mantenho paralelo a mim, como se não fosse meu, como se não fosse eu, como se não fosse você, como se não fossem nós mulheres, convivendo, coabitando esse mundo ao qual gostaríamos de pertencer. Como se o sacrifício feminino imputado a nós em todos os aspectos da existência, sempre de segunda classe, fosse natural: “É assim.” Não!
Penso nessa jovem mulher e a compreendo melhor hoje. Ela traz nos seus olhos expressivos e gestos calmos, uma aflição contida, comum as sobreviventes de grandes tragédias íntimas e pessoais. Eu sei dar por isso muito bem, porque a idade e a vida me ensinaram a olhar nos olhos só o tempo bastante para que a nossa mente, sábia conselheira, possa enxergar o que está acomodado no fundo do nosso inconsciente, aquelas experiências que não podemos suportar.
Se sou essa mulher, ou não, isso é o que menos importa. Tanto faz, se eu invento e ao inventario dessa história paralela. Revelo ou invento igualmente, um suposto esquecimento, um lugar apartado, paralelo, dentro de mim onde esperam e permaneçam soterradas as dores que me feriram, suspensas no tempo, sem, no entanto, serem apagadas.
Achado 2
Vejo, ouço, sinto e investigo a forma de ser deles. Nomeio pelo gênero masculino, como fazem, predominantemente, os dicionários: Eles. O substantivo masculino tem a ver com a ideia de patriarcado e construção muito antiga de uma suposta supremacia do masculino, com a qual convivemos, em que mulheres, vale ressaltar, também reforçam e assumem esse mesmo perfil.
É fácil de identificar o perfil: ele não reconhece o direito à vida além da dele e dos outros homens hetero cis, bem como, a igualdade de gênero, a diversidade e a dignidade humana dos outros seus semelhantes. Ele os vê como dessemelhantes.
Esse tipo é um opressor e, vai sempre mais longe: constrói sua reputação apropriando-se de leis, dogmas, clichês, hábitos, vícios de comportamento e falsas certezas, criados para favorecê-los. Torce para o seu time favorito e distorce a realidade conforme sua necessidade de poder sobre as outras pessoas, particularmente, as mulheres, como se fosse um “direito natural”.
A pessoa opressora e perversa começa a sê-lo, desde muito cedo, desprezando seus coleguinhas de escola primária, tratando-os como objetos para uso, abuso e descarte. Segue seu curso de vida sem reconhecer o devir das transformações ao longo do tempo e a imprevisibilidade do viver, obviamente, na certeza de que nada vai mudar na vida dela, uma vez que, por natureza e herança autoritária da sua cultura patriarcal branca machista (mesmo que seja uma mulher), não carrega remorso ou arrependimento.
Sentimentos, de uma maneira geral, são considerados fraquezas humanas. Assim, não os manifesta, nem em atos, nem em palavras ou ações.
Por fim, o repertório de ideias que o opressor defende não incluem, nem de longe valores como a empatia, a igualdade de direitos e de gênero, a democracia e a ética, a não ser que estejam, ardilosamente, distorcidas para favorecem a si mesmo e aos “seus”. Tendem a seguir, à risca, a velha máxima de que “os fins justificam os meios”, mesmos que os fins sejam subjugar, oprimir, escravizar, silenciar e os meios também.
Lidando com o que foi inventariado.
O Tempo, ri e nos diz que “tudo passa” e que “o mundo dá voltas”. Ele sabe. Mas, não tem graça. E o que fazemos antes de o tempo passar? O que fazer com as 24 horas do relógio de cada dia? Como aprender as muitas maneiras de cuidar do que sentimos?
A sabedoria popular, ensina que “fechar os olhos” faz o coração não sentir, como quem usa um mecanismo de defesa interior e, depois desdiz, afirmando que estar “longe dos olhos” torna tudo mais presente, mais “perto do coração”. Assim fica difícil encontrar uma “cura” …
Fechar os olhos soa como uma aceitação do perverso e sua perversão. Toda vez que nós, como pessoas ou sociedade, silenciamos a violência, a opressão, ao assédio, a ofensa ou qualquer ato de agressão contra outra(s) pessoa(s), reforçamos e até naturalizamos o comportamento dele ou dela.
Respeito muito minhas lágrimas
No fundo sei, tanto quanto aquela mulher sabe, que existem sentimentos muito antigos, dentro de nós, que não perdem a sua força, que não se deixam aniquilar pelo tempo e pelos acontecimentos. Foi mais ou menos assim que nos lembrou Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Conceição Evaristo Cecília Meireles, Florbela Espanca, Lídia Jorge, Rupi Kaur Viviane Mosé e outras mulheres incríveis em suas magníficas escritas.
A literatura, bem como as demais linguagens artísticas, encontra, no vazio, no “entre” do que não conseguimos dizer, no que silenciamos, uma versão do possível e, às vezes, até do impossível.
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Fonte: Ia da Bing
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