A estreia do filme Barbie está na boca do povo. O longa-metragem dirigido por Greta Gerwig e estrelado por Ryan Gosling e Margot Robbie tem gerado comoção, principalmente aos mais jovens. A propaganda é tanta que não só a chuva de memes está inundando as redes sociais, como também o próprio Google colocou glitter e mudou suas cores para rosa na ferramenta de busca, quando o nome do filme, da sua diretora ou dos atores são procurados.
Fora da internet não tem sido diferente, muitas marcas, inclusive de alimentos, estão surfando na onda Barbie e lançando novos produtos cor de rosa, o principal ícone da boneca. Não seria diferente em Salvador quando o assunto é a comida típica do soteropolitano: o acarajé, também chamado de acarajivis no dialeto baianês.
A ideia de colocar anilina comestível sem sabor para dar a coloração rosa ao acarajé, alimento sagrado para as religiões de matriz africana, de autoria da moradora do subúrbio de Salvador, Adriana Ferreira, tem sido no mínimo polêmica, afinal, até onde se pode modificar uma receita regional?
Nós brasileiros antropofagiamos tudo, para usar o termo e a teoria de Oswald de Andrade. Aglutinamos em nossa cultura o estrangeiro. A simbologia da Barbie no Brasil tem a ver com essa ideia da incorporação do que é do outro no que é nosso. Na culinária não seria diferente, ou vocês acham que no Japão existe sushi de manga, na Itália existe pizza de frango com catupiry e na França as pessoas comem croissant de carne seca com banana?
A nossa culinária está erigida nessa mistura de cheiros, cores e sabores. E aí cabe dar limites, o quanto estamos dispostos a comer o que é estrangeiro e abandonar o que é nosso? Se mudaram a receita do Acarajé podem mudar outras, o que sobrará de Brasil? A quem interessa conservar os nossos costumes ou abandoná-los?
Para os mais puristas ou para aqueles que tem o acarajé como alimento sagrado, o que foi feito na receita do bolinho pode ser interpretado como um crime contra a culinária baiana, uma ofensa aos Orixás ou um projeto de colonização que deu certo. Já quem está interessado na repercussão pode interpretar essa situação como uma brincadeira, um extremo caso de globalização ou apenas entretenimento culinário.
A figura da boneca Barbie já é símbolo do imperialismo estadunindense. A boneca que é ícone na cultura pop, representa o padrão de beleza branco, magro, não deficiente, cisgênero e rico. Se por um lado a boneca tem mil e uma utilidades e inspirou mulheres a se empoderarem, por outro, ela foi gatilho para o racismo e a gordofobia, alimentando a predatória indústria da beleza e desencadeando transtornos alimentares, porque todas queriam e algumas ainda querem o padrão da Barbie.
Hoje, a boneca não é mais aquela dos finais dos anos 1950, quando foi lançada, mas ainda não agrega o leque de identidades existentes, principalmente aqui no Brasil, embora existam edições especiais. Cadê a Barbie indígena? A Barbie deficiente? A Barbie trans? A Barbie desfilando seu black power? Cadê a Barbie com o preço acessível para que meninas da periferia possam brincar com ela? Cadê os estadunidenses querendo comer a nossa cultura e lançando em larga escala uma Barbie que realmente represente o Brasil? Na verdade, quem come a cultura estadunidense somos nós, naturais antropófagos.
Sobre o caso, não vou julgar se é certo ou errado colocar corante na receita do acarajé. Eu comeria? Não sei. Porém é interessante pensar como o aspecto globalizante e capitalista é tão potente que a onda de propagandas de um filme de uma boneca símbolo de colonização estadunindense, como a Barbie, tanto nos afetou no contexto brasileiro.
Afinal, o que temos a ver com uma boneca branca, magra e rica que mora em uma mansão em Malibu? Que comamos a Barbie, vamos ao cinema assistir mais uma versão de uma narrativa sobre a boneca, mas que deglutamos também Iara, nosso folclore, o cinema nacional e as bonecas de pano da feira de São Joaquim.
Imagem: Pinterest <https://br.pinterest.com/pin/304344887322627647/>
Referências:
CORREIO. Baiana faz acarajé cor de rosa em Salvador e causa polêmica. Disponível em: <https://www.correio24horas.com.br/minha-bahia/vendedora-de-acaraje-faz-comida-cor-de-rosa-e-viraliza-na-web-0723> Visto em: 18 jul. 2023.
ANDRADE, Oswald. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, 1995. (Obras Completas de Oswald de Andrade).
Achei interessante sua observaçã.
Me impressiona toda essa celeuma em torno do filme,até onde vi o comercial,é uma produção repleta de colorido e alusões a cultura americana mais conhecida,sem nada que evoque uma superprodução que contenha algo inovador interessante sobre o universo da boneca. Quanto ao acarajé em homenagem ao longa,foi pura jogada de marketing,porém,desrespeitosa com o patrimônio e a sacralidade no processo de feitura. Se a moda pega......
E acrescento... o problema é mais grave ainda. Porque até essa crítica feita por você e por mim em nossos ensaios, foi incorporada no filme, da mesma forma que outras produções hollywoodianas. Ou seja, da mesma forma que o segundo episódio da primeira temporada de Black Mirror, aquele do povo da bicicleta, a crítica em si foi comodificada, convertida em mercadoria. Em vez de apresentar um filme superficial e fantasioso, como nas décadas de 80 e 90, começamos a ter agora as metacríticas (os famosos filmes META), produtos refletindo sobre si mesmos (produto autoreflexivo?). E aí mora o perigo. Se os filmes dentro da lógica do mercado já fazem aquilo que nós das humanidades fazemos, qual a nossa contribuição? Que…
Gostei da provocação. Eu não sabia disso de colocarem rosa no Acarajé, essa me pegou de surpresa e, de fato, parece um tanto problemático.