"Suave como a gaivota e felina como a leoa, Tranquila e pacificadora Mais ao mesmo tempo irreverente e revolucionária, Feliz e infeliz, realista e sonhadora, Submissa por condição mas independente por opinião, Porque sou mulher Com todas as incoerências que fazem de nós o forte sexo fraco" (Vanusa).
A música brasileira é louvada pela qualidade e diversidade de ritmos e autorias. Do final do século XIX até as datas atuais, a produção musical no país, amplamente vasta, lançou no mercado milhares de bons compositores e intérpretes. Dos temas mais destacados, sem dúvida o amor e os sentimentos afetivos embalaram solitários e casais, em melodias frescas e fascinantes. Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Roberto Carlos, Chico Buarque, Djavan, Gonzaguinha... O time invasor das rádios e vitrolas fez a alegria emocional de muita gente. Mas e as mulheres?
Os artistas masculinos perfazem boa parte das primeiras décadas do cancioneiro popular. Carmem Miranda foi uma das pioneiras, seguida pelas “Rainhas do Rádio” a partir dos anos 1940: Aracy de Almeida, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Linda e Dircinha Batista, Ângela Maria, Dolores Duran... Essa última, compositora de grandes canções “dor de cotovelo”. As nossas divas, cantaram muito os dissabores de estar amando.
Somente nos anos 1970 ousaram mostrar o que sentiam com maior autoridade, assumindo protagonismo ao cantar um ponto de vista mais apropriado aos dilemas de ser mulher. Rita Lee foi pioneira na arte de agenciar o ato sexual sob a perspectiva feminina, com letras pra lá de irreverentes, com altas doses de picardia. No entanto, o drama de viver relacionamentos abusivos e expor isso com cara e coragem coube à Vanusa.
Ela foi muito identificada com a Jovem Guarda, pois o crescimento de sua carreira coincidiu com o surgimento da derradeira geração de artistas deste movimento. Contudo, a intensidade de sua vida invadia cada vez mais seu repertório. Passou por seis conturbados casamentos, conviveu com a dependência química e a violência doméstica. O sofrimento deu voz a uma compilação de sucessos que fazem parte de um acervo que potencializa o discurso da emancipação feminina.
Sempre se declarou feminista e suas composições carimbam sua expressão.
Hoje eu vou mudar, Vasculhar minhas gavetas Jogar fora sentimentos E ressentimentos tolos. Fazer limpeza no armário, Retirar traças e teias E angústias da minha mente. Parar de sofrer Por coisas tão pequeninas. Deixar de ser menina pra ser mulher. (“Mudanças”)
O histórico nacional de canções que abordam dificuldades afetivas tem um mostruário nada louvável em uma parte delas. A popular “Maria Chiquinha” mostra-se jocosa, mas é tão sutil que a então duplinha Sandy e Júnior a regravou (termina com um feminicídio). “Nega Manhosa”, “Mulher Indigesta”, “Faixa Amarela” e tantas outras fazem parte de uma época a qual retratar algum tipo de violência contra a mulher não gerava tanta revolta. Vanusa contribuiu muito para chamar atenção para uma vocalização de letras mais audaciosas, perpetradas pelas próprias mulheres, como na libertária “Manhãs de Setembro”.
Eu quero sair Eu quero falar Eu quero ensinar o vizinho a cantar Eu quero sair Eu quero falar Eu quero ensinar o vizinho a cantar Nas manhãs de setembro Nas manhãs de setembro Nas manhãs de setembro Nas manhãs...
Fui eu que se fechou no muro e se guardou lá fora Fui eu que num esforço se guardou na indiferença. Fui eu que em numa tarde se fez tarde de tristeza Fui eu que conseguiu ficar e ir embora E fui…
Lamentavelmente, nos atentamos para a importância das coisas quando elas vão embora. Escrevo esse texto dias após o passamento de Vanusa, aos 73 anos, de insuficiência respiratória, internada com quadro de Alzheimer. Sempre defendo que homenagens devem ser feitas ainda em vida. Nem sempre é assim. Fundamental é reconhecer a luta de Vanusa através da música. E que muitos e muitas reconheçam. Jovens feministas talvez não conheçam o repertório dela, visto que há muitos anos ela havia entrado em pleno ostracismo. Antes tarde do que nunca.
A mão que te acaricia É a mesma que esbofeteia E a boca que te beija É a mesma que injuria.
O braço forte que lhe ampara É o mesmo que te bate na cara! (“S.O.S Mulher”)
FONTE:
Imagem: Canal Ideal
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