Antes de começar nossa jornada nesse ensaio, preciso fazer uma pergunta rápida ao meu querido leitor: Você já leu a “origem das espécies”? Não?!!! Por algum motivo curioso esse livro não é apenas ignorado pela direita, os famosos criacionistas, mas até mesmo a esquerda parece não ser muito fã de Darwin. É comum acreditar que somos construções sociais, uma simples tabula rasa modelada por discursos, linguagem, símbolos e cultura. Parece óbvio que não somos como os outros animais... somos melhores. Na verdade, é completamente ofensivo me comparar a um chimpanzé, ou, pior, a uma mosca. Ao contrário dessas criaturas infelizes, nós modelamos nossa mente, nosso corpo e o mundo ao redor, tudo isso conforme nosso desejo, nossas organizações políticas, nosso modo de produção, etc. Como consequência, não existe aqui apenas uma fronteira entre natureza e cultura, mas uma hierarquia também. Nosso corpo e o mundo ao redor são como massas de modelar, super flexíveis e apenas aguardando nossa intervenção conveniente, enquanto os animais lá fora permanecem presos em leis newtonianas rígidas, em espaços fixos e temporalidades congeladas.
Tudo isso torna o pós-estruturalismo, dentro das ciências sociais, um descendente direto dos grandes iluministas do século XIX, por mais estranho que pareça essa comparação. Ao afirmar esse construcionismo social, acreditamos que o mundo lá fora se encontra sob nosso comando, completamente à mercê das nossas preciosas categorias epistêmicas, ou seja, de nossas categorias compreensivas (linguagem, poder, classe, gênero, etc). Isso cria, como consequência, um monopólio das discussões sobre o humano. Apenas nós, das ciências sociais, teríamos condições de compreender a nossa espécie, enquanto as outras áreas são vistas como simples complementos, no mínimo, ou apenas arranjos ideológicos desnecessários e perigosos, no máximo, principalmente quando descobrem algo que ameaça as premissas do construcionismo social.
O tempo passa e as ciências sociais continuam ainda indiferentes às maiores descobertas do nosso século, indiferentes aos avanços na neurociência ou aos estudos na psicologia evolutiva. Mas por que isso acontece? Por que encontramos pessoas de ciências sociais com livros de arte, economia, geografia debaixo do braço, mas dificilmente com um livro de um biólogo? É apenas por uma fronteira disciplinar arbitrária ou talvez exista algum motivo maior nos bastidores? Esse é o objetivo desse ensaio de hoje, entender os motivos que nos levam a temer Darwin e suas influências nas ciências sociais
Recusamos a leitura de biólogos, físicos, neurocientistas, além de muitas outras ciências contemporâneas por quatro motivos simples:
1) Ainda acreditamos que o terreno biológico é um espaço imutável, fixo e, portanto, sufocante. Como sugerido pelo próprio Rousseau e Marx, a natureza não é o espaço da história, mas do instinto, da repetição. Estudos contemporâneos nas ciências humanas e sociais, por outro lado, questionam essa ideia de uma natureza como algo rígido, frio e indiferente. Figuras como Donna Haraway, Bruno Latour, Brian Massumi, Manoel DeLanda, Jane Bennett, Karen Barad, e muitos outros, recusam essa visão limitada de uma natureza como puro instinto inflexível, assim como questionam a predominância do pós-estruturalismo nos espaços acadêmicos.
2) É normal acreditar que a defesa de um argumento biológico é como uma sentença perpétua, um destino que devemos apenas acolher sem críticas ou resistência. Por exemplo, afirmar um componente biológico nas mulheres, como a maternidade e o cuidado, significaria justificar as violências de gênero no mundo ou ainda reproduzir infinitamente essas mesmas práticas. Todos os relatos etnográficos disponíveis, ao menos aqueles que tenho acesso, revelam o quanto as mulheres são associadas ao cuidado, a fertilidade, enquanto homens, em geral, se voltam a tarefas como caça, pesca e guerra. Não existe nenhum registro antropológico, ao menos que eu saiba, de sociedades onde mulheres são guerreiras, por exemplo. Contudo, a descoberta desse componente biológico não significa dizer que as mulheres PRECISAM continuar reproduzindo esses comportamentos ou que o sexismo está justificado. Nada impede as mulheres de seguirem por outros caminhos, de sugerirem outros arranjos. Ou seja, argumentos biológicos não são argumentos políticos. Essa é uma confusão normalmente feita pelos pós-estruturalistas.
3) Existe também um componente político que nos impede de invadir outras áreas. O construcionismo social é a nossa garantia de que o mundo é maleável de acordo com nossos interesses, nada mais do que um espaço disponível às nossas intervenções. A entrada no campo biológico é contingente demais, incerta demais, por isso apostamos em coisas como a linguagem, o discurso, o poder, ou seja, em instâncias flexíveis, modificáveis. Entrar no universo biológico significa contingência, significa perder um pouco nosso controle humano, e por isso nos afastamos de qualquer descoberta que ameace essa segurança, esse conforto até mesmo existencial
4) É preciso lembrar também que os grandes intelectuais das humanidades, e defensores de estudos biológicos, são infelizmente de direita. Isso nos distancia mais ainda dessas áreas. Por exemplo, figuras como Jordan Peterson, e muitos outros, usam argumentos biológicos para legitimar desigualdades sociais. Eles continuam reproduzindo uma dicotomia perigosa entre, de um lado, as ciências biológicas (direita) e, do outro, o construcionismo social das ciências sociais (esquerda). Sem dúvida, essa fronteira não deveria existir. O campo biológico não deve ser o monopólio de figuras de direita, muito menos um pretexto de legitimação de desigualdades sociais.
A natureza não determina nosso comportamento, é óbvio, mas fingir que ela não existe é um erro grave, além de uma arrogância que não faz sentido nesse nosso século XXI. Talvez na década de 60 era necessário o construcionismo social, mas hoje é preciso ampliar os horizontes, entrando em um espaço de interdisciplinaridade. Precisamos aprender com outras áreas, afinal o humano é uma criatura complexa, em rede.
Um ótimo exemplo de como natureza e cultura são componentes relacionais, e importantes enquanto unidade, é o próprio corpo trans. Sem dúvida, existe uma série de intervenções nesse corpo, como cirurgias, hormônios, discursos e mudanças de comportamento, mas ainda assim o corpo não é passivo, não é apenas uma tábula rasa aguardando intervenções externas. O corpo trans é um espaço em que natureza e cultura dialogam, lutam e negociam. Não é coincidência que essa corporeidade precisa constantemente de vigilância, cuidados e intervenções, sejam elas psicológicas, nutricionais, medicamentosas e até cirúrgicas, dependendo do transicionamento desse mesmo corpo. Em outras palavras, como já escrevi em outro ensaio (LINK), o corpo trans é um exemplo de que o humano é muito complexo, sendo um espaço constante de negociações, ao invés de uma simples tábula rasa aguardando ser modelada.
Referências da imagem:
https://www.gestaoeducacional.com.br/teoria-da-evolucao/
amei esse texto, colocou meus pensamentos na escrita perfeitamente