* Por Gabriella Melo
Os lugares constituem cidades, significam territórios, e são capazes de conferir identidades sociais. A História nos induz a essas identidades de grupo, e a procura daquilo que nos é próprio, nos faz observar a diversidade da natureza humana e reconhecer o outro, assim participamos de experiências que mesmo não sendo por nós vividas, com elas nos identificamos.
Até outubro de 2002 eu nunca tinha andado de trem. Como muitos moradores de Salvador que o desconhecem, eu nem sabia que existia trem na cidade! Mas, como comecei a estagiar na Rede Ferroviária Federal resolvi andar de trem, sozinha, e me emocionei como uma criança ao receber um brinquedo novo. Recebi um trem, usado, que durante algum tempo me debruço a pesquisar.
Pelas janelas do trem fui percebendo em meu primeiro passeio que o subúrbio de Salvador foi se constituindo nos arredores da linha do trem não por acaso, e sim por ter sido ali uma das bases do desenvolvimento do estado da Bahia, entre o final do século XIX e o início do século XX. Foi em 28 de junho de 1860, com a inauguração do trecho que ligava o bairro da Calçada ao bairro de Paripe, que tudo começou. Os vagões naquela época eram a vapor, percorriam esse trecho em uma hora de viagem. Hoje não ultrapassam 35 minutos, e utilizam energia elétrica.
Ainda encontramos as ruínas da antiga fábrica têxtil, Fatibrás, que acompanhou o auge e o declínio das ferrovias no estado e foi diretamente afetada com isso. O subúrbio já foi local de veraneio da elite de Salvador em séculos passados, as praias de São Tomé de Paripe e Base Naval são destinos que vem tendo muita procura aos finais de semana.
No decorrer do século XX esse trecho férreo passou por uma série de modificações visando a grande demanda de passageiros e cargas. Houve a mudança da bitola, distância entre os trilhos, de 1,60 m para 1,00 m na primeira década do século XX, aquisição das primeiras automotrizes a diesel (fabricadas na Alemanha entre 1926-1929) e, posteriormente, a construção dessas máquinas a diesel nas oficinas de Aramari/BA (próximo a Alagoinhas/BA). Em seguida, com a modernização das estações do subúrbio entre 1936-1943, intensificou-se o interesse por parte do governo em investir nas ferrovias. Houve a duplicação das linhas, a construção da ponte São João (inaugurada em 1952, substituiu a antiga ponte construída pelos ingleses) dividindo a Enseada do Tainheiros e a Enseada dos Cabritos, e a eletrificação das locomotivas a vapor .
Até 1972, os trens ainda percorriam as linhas em direção ao município de Simões Filho. Depois passaram a ir até Aratu e Mapele. No final dos anos 80, com a redução da linha, o trem passou a trafegar somente até Paripe, reorientando a dinâmica dos lugares por onde passava, e a vida das pessoas que dependiam da sua existência não só para o lazer, mas para ir ao trabalho, escola ou transportar seus produtos para comercialização em outros centros urbanos.
O trem foi uma importante ferramenta para o desbravamento de espaços chegando às cidades, criando cidades e reformulando a paisagem de algumas existentes. Os seus mais de 150 anos no Brasil refletem hoje muitas perdas e abandono. Mas, o mais importante fica, que são as pessoas que utilizam deste meio de transporte em seu dia-a-dia, os ferroviários que os mantém, e os amantes das ferrovias que lutam pela sua reativação. Todos esses agentes são responsáveis por cada metro estendido de uma estrada, por cada parada do trem, por cada centavo gerado, por cada lembrança.
Segundo a Rede Ferroviária Federal, os motivos principais que levaram a redução da linha férrea na Bahia foram a baixa produtividade das locomotivas em função do volume de cargas tracionadas e os constantes furtos dos cabos elétricos, além da própria obsolescência do sistema e da falta de manutenção adequada[1].
Mas isso justifica? Os países desenvolvidos investem altíssimo nas ferrovias, seja para transporte de passageiros, seja para transporte de cargas. É um meio econômico viável, uma vez que um trem pode comportar a carga que seriam necessários 64 caminhões para transportar, é confortável e cômodo quando há uma boa manutenção, e ecologicamente sustentável.
Olhando novamente pela janela do trem percebo crianças acenando, sorridentes. Percebo janelas que não se abrem quando o trem passa, não há espaço. O marco do Petróleo na Bahia, primeiro poço perfurado em 1938 no bairro do Lobato, está exposto como se fosse uma peça decorativa de construção.
Pedestres andam tranquilamente pela linha férrea, desafiando a velocidade do trem. As luzes se apagam, é um túnel, quando acendem o filme não acabou, se reinicia o cotidiano suburbano parte II. O trem não vai muito além dali.
Tem-se como subúrbio ferroviário da cidade de Salvador a RA (Região Administrativa) que se estende entre a Baixa do Fiscal e a Ilha de Maré. Esta região é um dos pontos de maior índice de vulnerabilidade da cidade, principalmente de violência social, onde se marginaliza um espaço de uma cidade, que apesar de ter uma das vistas mais belas da Baía de Todos os Santos, concentra hoje mais de 30% da população da cidade, população esta que sobrevive abaixo da linha da pobreza.
Por que não se discute o desenvolvimento de uma política urbana que estabeleça como premissa básica à utilização adequada dos recursos territoriais e sociais? São 13,5 Km de linha ferroviária que oferece um baixo custo de transporte para os passageiros, também são vagões que se perpetuam na história de um povo trabalhador que tem nestes uma referência, uma necessidade, uma preferência. Paisagem contraditória entre praias e invasões, moradia e lazer. Por que não faz parte dos cartões-postais da cidade?
Com o aumento gradual da população desses núcleos suburbanos, surgiu a necessidade de se criarem trens cuja circulação se limitasse exclusivamente àquela zona. Duplicou-se a linha em 1953, reduziu em 1989, privatizou em 1996. Quarenta e três anos que separam o auge e o declínio das ferrovias baianas, a remodelação das relações sociais, e mais uma vez prevalecem os privilégios de uma classe dominante.
Logo que houve a privatização da malha ferroviária, o número de pessoas transportadas, que já chegou a 25 mil por dia, caiu para 3 mil por causa da falta de segurança. Salvador é estampada em outdoors como Patrimônio Cultural da Humanidade, o que significa carregar esse selo da Unesco quando ela mesma, a cidade, não funciona como patrimônio local? Quando ela mesma não sabe utilizar de suas ferramentas de inclusão? Como àquela população que depende do trem para seu sustento diário reagiu a situação imposta da redução da linha férrea? De quais formas seu dia-a-dia mudou?
Essas são algumas questões que envolvem os campos da economia, da cultura, da política e o campo social, não só da nossa cidade como do nosso país. É preciso sensibilizar o olhar para essa parte da cidade, respeitando os sujeitos envolvidos e preservando a memória de um patrimônio que é a representação, monumento, de uma época de desenvolvimento e hoje resiste bravamente tentando atender a uma população que tem um diferencial, não vivem, sobrevivem, sorrindo quando o trem passa.
Somos hoje fruto de um complexo movimento de resistência na história, muitas vezes contadas pela metade, que nos deixa semelhante a indivíduos pela metade. Contudo, Sharpe considera que “a história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nós nascidos sem colheres de prata em nossas bocas, de que temos um passado, de que viemos de algum lugar.”[2] A identidade é definida historicamente, e o trem do subúrbio não tem muitas referências escritas sobre o seu passado, talvez por ser do subúrbio, talvez por não ter sido um “herói” aos olhos de alguns. Por outro lado, é um patrimônio, ele próprio, o trem, é registro de perseverança, suas idas e vindas no subúrbio e nas cidades do interior do estado foram responsáveis pela transportação de produtos e passageiros que fizeram parte dia-a-dia da construção da nossa história. Esse dia-a-dia é o centro do acontecimento histórico, segundo Agnes Heller “toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade.”[3]
O estudo do cotidiano dá relevo ao acontecimento histórico, “é a verdadeira essência da
substância social.”[4] A substância por sua vez são os sujeitos históricos, que constroem as estruturas da sociedade, transmitindo informações para que essa possa sustentar suas relações. A cotidianidade de um grupo mantém até certo ponto essa estrutura social, mas também interfere na aceitação do papel social de cada um, na responsabilidade que cada um tem para com a sua própria história.
É o que podemos perceber no subúrbio ferroviário de Salvador, com a redução da linha férrea toda aquela área modificou, se readaptou para sobreviver com mais uma forma de exclusão, “a memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma a que a memória coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.[5]” A memória preservada constitui a necessidade da manutenção do patrimônio, para a compreensão do seu sentido atual e direcionamento futuro.
* Graduada eem História (Ucsal)m Especialista em Turismo e Interpretação do Patrimônio com Comunidades. Criadora da Página @toporai
Link da imagem: https://outrofoco.wordpress.com/tag/trens-urbanos/
REFERÊNCIAS
Almanaque do Trem. 82. JCV, Rio de Janeiro, 1982.
BURKE, Peter (org). A Escrita da História: novas perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992.
HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. 6 a ed., São Paulo, Paz e Terra, 2000.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2 a ed, São Paulo, UNICAMP, 1992.
NOTAS
[1] Almanaque do trem, p. 07.
[2] Jim SHARPE, “A história vista de baixo”, in: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas, p. 62.
[3] Agnes HELLER, O cotidiano e a História, p. 20.
[4] Ibid.
[5] Jacques LE GOFF, História e memória, p. 477.
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