O Observatório de Mortes e Violências LGBTI+ do Brasil divulgou, no dossiê de 2022, 273 mortes LGBTQIAP+ de forma violenta no país, sendo destas, a imensa maioria de assassinatos contra a população trans. Aqui estamos falando da maior violação de direitos que se possa imaginar: o direito à vida.
A luta para a visibilização e respeito de pautas levantadas pelas mulheres trans e travestis têm surtido efeitos positivos, mesmo que ainda esteja longe de alcançar a velocidade da luz. Pessoas não binárias têm lutado por seus espaços também. E transmasculinos? Que categoria é essa? Depois da ‘’transição’’ eles somem? Quando a barba cresce, a comunidade fica pequena? O sonho do oprimido é se tornar o opressor? Se você pensa assim, significa que esse texto vai te ajudar a analisar outras perspectivas de existência para a categoria.
A transmasculinidade abrange pessoas da comunidade trans cuja identidade de gênero está associada ao masculino. Quando o tema surge é comum associar esses corpos a uma intensa transição de gênero a partir da hormonização e da mastectomia, além da transição de comportamento para uma performance machista e sexista. Entretanto, esse tipo de associação homogeiniza uma categoria completamente heterogênea, afinal, ser uma pessoa trans não se resume a modificações corporais em decorrência do ódio ao corpo, a mudança do lugar social de oprimido para opressor e nem a uma correspondência gênero-sexualidade-performance.
Mas quanto a transmasculinidade é performática e quando ela é subversiva? Primeiro vamos considerar que, todo gênero, por necessidade de existência, se performa. O questionamento é: quais performances são mais vistas? A normatividade compulsória enquanto única alternativa a existência de corpos trans adoece toda uma comunidade marginalizada ao determinarem que tudo bem ser uma pessoa trans, desde que haja uma busca pela passabilidade cis. Ou seja, você pode ser trans, mas precisa odiar e modificar o seu corpo e suas relações para se transformar aquilo que você descobriu que não é: cis.
As normativas de gênero impõem muito bem quais os checklists precisam ser preenchidos para a carteira de homem chegar em suas mãos, mas ao contrário do que muitos podem pensar, a transmasculinidade é uma grande possibilidade de repensar novos espaços de possibilidade de performance do masculino. Vimos em um outro texto[1] que o gênero é uma ferramenta poderosa de controle de corpos (cis e trans), mas ao se desvencilhar de uma ideia cisnormativa percebemos que não existe nenhuma regra a ser seguida para ser homem trans, mulher trans e/ou travestis ou pessoa não binária.
Caio Fadul, psicólogo e homem trans soteropolitano, utilizou o espaço acadêmico na graduação para levantar as pautas das transmasculinidades dentro da psicologia. Em diálogo (voluntário e não porque por coincidência ele também é meu companheiro) para a construção deste artigo, ele me contou o seguinte:
A crononormatividade nos diz que precisamos nos hormonizar, que precisamos retificar a documentação, que precisamos nos mastectomizar. Nem todo mundo deseja isso e tá tudo bem. Tá tudo bem desejar também. Não existem níveis de subversão, mas com certeza precisamos nos questionar o porquê de tantos discursos e comportamentos problemáticos dentro da nossa comunidade. Talvez, só talvez, possamos ver a tranasmasculinidade ser mais subversiva quando não nos enfiarem, goela abaixo, a necessidade da cisnormatividade masculina como conduta para sobreviver.
As expectativas sobre o corpo transmasculino variam muito a partir de onde se fala. Infelizmente, para a algumas pessoas da própria comunidade, o machismo e o sexismo são uma forma de se afirmarem enquanto ‘’homem’’, revelando a busca compulsória pela cisheteronormatividade.
Não há nada que vá nos tornar "homens" o suficiente para uma sociedade genitalista e tão sexista. Prefiro ser todo transviado. Somos esquecidos na saúde, na educação, nas políticas de reafirmação, nos afetos. Como nos veem? Como nos idealizam? Nos espaços de debate, quais são os temas que direcionam para nós?
Na saúde, parece que só se lembram da nossa existência para falar de hormonização e mastectomia. Parece que não podemos (ou desejamos) engravidar, que não podemos ter IST's, que também não se faz necessário o uso de camisinha, que não precisamos de atendimento equipado para fisioterapia ou, sei lá, cardiologia (como se só precisássemos de endócrinas e ginecologistas). É muito complexo dizer o porquê de sermos invisibilizados, mas 4 fatores são significativos pra mim: a escassez de dados sobre a nossa população; a pouca quantidade de material científico produzido por nós sobre nossas demandas (terceirizam sempre as nossas necessidades); o fato de nos enxergarem, em alguns casos, como cis (seja por conta da barba, seja por conta da mastectomia), então acabamos por sermos pessoas "non gratas" em alguns espaços, já que as discussões sobre gênero e masculinidade caminham a passos curtíssimos e ainda não conseguimos avançar no pensamento interseccional; por fim, porque é recente a inclusão de identidades masculinas nos espaços destinados a se discutir gênero, visto que, há uma falsa disseminação de que essas discussões servem apenas às mulheridades (ideia vinda, principalmente, do feminismo liberal branco). - Caio Fadul
Atualmente (quem está por dentro das pautas) o direito por gestar tem sido uma luta significativa dentro da comunidade transmasculina. Esse é um debate interessante, principalmente porque a gestação ainda é associada, compulsoriamente, apenas a mulheres cis. É raro encontrar lugares que abordam/trabalho com gestação incluírem os homens trans no bojo dessa vivência.
Eu não desejo gestar por inúmeras razões, mas nenhuma delas inclui o fato de ser transmasculino. É realmente uma lógica muito perversa de correspondência. Muitas vezes nem paramos para nos questionar o porquê de, em tese, não desejarmos coisas que são intimamente ligadas às mulheridades - Caio Fadu.
A correspondência gênero-sexualidade-performance também é um aspecto cruel, já que, se você é homem trans então tem que gostar de mulher, afinal, não faz sentido se passar por tudo isso pra no final continuar gostando de homem. A relação ativo-passivo domina a ideia de um tipo de performance sexual para cada tipo de gênero. As idealizações de correspondência nunca acabam.
No meu caso, esperam sempre uma postura muito dominante, mas eu sempre gostei de ser mais submisso. Eu nunca odiei o meu corpo e tenho excelente relação com minhas mamas e minha genitália. Por vezes, tive sexos horríveis porque a pessoa já presumia que eu não gostaria de ser tocado, penetrado, chupado. Sequer me perguntava, sabe? Então eu ficava ali como um adereço, uma coisa. A pessoa sentia prazer e eu não, porque para mim era importante demais ser tocado. Sou bissexual, então as experiências com homens cis foram as piores: eu era muito fetichizado, um troféu a ser colocado na estante que representasse a sua enorme desconstrução (aham, tá bom) ou a sua curiosidade. - Caio Fadul
@transmasculinos
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Nota
[1] O texto em que refiro é intitulado ‘’Mulher que gosta de dar: de quem é esse problema?‘’ e pode ser encontrado no site da Soteroprosa através do link: https://www.soteroprosa.com/single-post/mulher-que-gosta-de-dar-de-quem-%C3%A9-esse-problema
Fonte da imagem: instagram/@transmasculinos
Referência:
Me pega muito a passagem "[...] já que, se você é homem trans então tem que gostar de mulher, afinal, não faz sentido se passar por tudo isso pra no final continuar gostando de homem.", porque mostra bem como é muito associada a identidade como um marcador dos seus desejos, ao invés de uma quastão identitária. E pra muita gente isso parece quebrar um "lógica" imensa de tudo que eles esperam.