Quando o assunto é polêmico, a gente convoca uma força tarefa para discutir sobre a temática em um GT - Grupo de Trabalho. Neste grupo estão os especialistas, os achistas e os leigos.
O tema de hoje requer um GT, mas nesse aqui quase todo mundo é pós-graduado em uma das categorias: a traição. Quanto a outra, só o fato de estar no título já pode ser motivo para que uma galera nem entre no texto, imagine ousar pensar comigo sobre.
O bom é que até aqui só ficou quem realmente acha representativo o dia 25 de abril[1].
A partir daqui, vamos tentar alinhar os pontos e depois, querido/a e gentil leitor/a, sinta-se à vontade para opinar.
Traição é uma palavra que possui a mesma origem de tradição. Tradição significa a continuidade de algo (doutrina, visão, costume, pensamento, etc.). Quando pensamos em traição as palavras-chaves que surgem são: infidelidade, quebra de confiança e mentira.
Na perspectiva monogâmica, a traição é um fenômeno indissociável. Sabemos (e tememos) da possibilidade de ser traído/a/e porque há uma demanda pela exclusividade afetiva, amparada pelos pronomes possessivos.
Nesse cenário, há uma mobilização pessoal na tentativa de que isso não aconteça. Seja tentando escolher o/a parceiro/a mais fiel, construindo os melhores acordos ou até esforçando-se para controlar os passos de quem está conosco. Mas, ao que me parece, a saída mais eficaz é confiar que não se desejará o título de traidor/a, pois socialmente ele possui bastante peso negativo.
A carga pejorativa dessa denominação é tão forte que consegue chegar na ‘’vítima’’ traída, uma vez que, perdoar uma traição não é visto como sinônimo de ser uma pessoa bondosa e compreensiva, mas sim, trouxa e corna mansa. Concepções que estimulam não desejarmos estar associados/as com quem trai.
Alguém que se permite tentar compreender as motivações do/a traidor/a e reverter a situação de alguma forma é considerado/a tolo/a. As únicas opções são: ostracizar a pessoa da nossa vida ou se vingar fazendo o mesmo, na tentativa de equiparar as coisas.
Mas, a segunda opção é perigosa, pois nos dá o mesmo título de traidor/a. Porém, vejam que pode ser justificável (a depender dos olhos de quem veja) quando a traição é uma resposta a falta de responsabilidade do/a outro/a para conosco. Então, variáveis são construídas socialmente para que algumas situações sejam ‘’aceitas’’ em detrimento de outras. Concorda?
A sensação, e aval social, de que a outra pessoa é nossa e seus desejos nos pertence integra muito a percepção que construímos sobre os nossos relacionamentos. Quando isso parece estar ameaçado de alguma forma, surge o ciúmes.
O ciúmes, por sua vez, é aquela emoção que a gente sente quando acha que algo que é nosso está ameaçado. A internet diz que é um dos sentimentos mais experienciados pelos seres humanos.
A pergunta é: aceitaremos a variável de que traição pode não pertencer ao universo não monogâmico, uma vez que, exclusividade afetiva/sexual, ciúmes e outras categorias são pensadas e vivenciadas de outras maneiras?
Vamos considerar que estamos falando de pessoas, pessoas que mentem, sentem ciúmes, sofrem com a sensação de serem preteridas, entre outros. Afinal, são essas pessoas que constroem socialmente o que se entende das configurações de relacionamento. Você pode apresentar esse argumento para justificar o pensamento de que não monogâmicos traem sim.
Entretanto, vamos considerar que a monogamia não é construída por pessoas, mas sim, por instituições (sobretudo a religiosa colonizadora) possuidoras de muito mais poder que os cidadãos civis.
Mas então, quem constroi a não monogamia? Principalmente considerando que suas práticas existem bem antes da dimensão institucional nascer[2].
Na perspectiva não monogamia tenta-se des-hierarquizar os afetos, considerar a individualidade das pessoas, mas sobretudo, olhar para dentro de si mesmo/a na tentativa de compreender que algumas emoções negativas são pré-fabricadas pela sociedade romântico-capitalista-controladora. Claro que isso não faz com que elas deixem de existir, mas esse pode ser um dado importante para conseguir identificar de onde elas vem e entender como desejamos lidar com elas.
Independente de configuração, as pessoas continuam mentindo e enganando umas às outras? Sim, porque isso é sobre as pessoas. Mas, algumas configurações alimentam mais essas ‘’necessidades’’[3] do que outras, isso porque, não nos mostram que há uma outra possibilidade de pensar e nos relacionar.
Penso que cria-se sim uma tradição em torno da traição, onde há a continuidade do pensamento de que pode ser mais fácil concretizar os desejos por debaixo dos panos ao invés de magoar/ferir a pessoa amada ou apenas como uma forma de viver nossos desejos sem os olhares julgadores da sociedade.
Mas, há também tradição no elemento oposto, aquele que não trai de forma alguma e acaba por negar seus desejos. Logo, a pessoa que não os nega, mas acaba por fazer isso de forma desonesta, é digna de toda a nossa fúria.
O que nos resta sentir pelas pessoas não monogâmicas? As que buscam a coragem suficiente para tentar sair dessas lógicas doutrinárias?
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Nota:
[1] Dia do corno.
[2] Uma sugestão de leitura para elaborar essa perspectiva é o Descolonizando Afetos da Geni Nunes ou @genipapos.
[3] Necessidade aqui diz respeito à dimensão de que algumas pessoas podem não se sentir confortáveis para lidar ou compartilhar seus pensamentos e desejos consigo mesmas e/ou com outras pessoas. Dessa forma, acabam entrando na porta do achismo de que mentir é mais fácil que ter conversas difíceis ou até mesmo se aceitarem, uma vez que, a sociedade pode os condenar (e sabemos que condena mesmo, vide a carga pejorativa do termo traição, afinal, Judas não é nada além de um traidor).
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Nossa, muito real esse lance que a a monogamia perpetua a cultura da traição, tanto pelos que praticam quanto pelos que combatem. A Não monogamia não é mesmo a "solução" de nada, mas não vejo outro ponto de partida pra viver além dessa lógica.