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TERTULIANA LUSTOSA EDUCANDO COM O CÚ: ISSO É MESMO ARGUMENTO PARA A EXTREMA-DIREITA?

Atualizado: 13 de abr. de 2024




Uma semana antes da morte da nossa icônica Rita Lee, alguns jornais regionais do estado da Bahia repercutiram de forma questionável um evento de discussão promovido pela artista e pesquisadora Tertuliana Lustosa, mestranda em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Toda a polêmica estava concentrada no título: “Educando com o cu”, mais precisamente pelo uso na forma coloquial do termo referente ao orifício anal – estrutura presente em grande parte dos animais viventes no planeta Terra.


A provocação de Tertuliana no início me causou estranheza, e sim, ao ver os jornais de direita usando o evento como forma de desmerecer a universidade, rejeitei a escolha do termo para abrir a roda de conversa. Muito dessa minha rejeição inicial veio de frases de colegas de esquerda neste teor: “infelizmente isso só dá argumento para extrema direita oprimir ainda mais o nosso povo”, ou mesmo “isso é um prato cheio para o bolsonaristas continuarem dizendo que a UFBA só faz balbúrdia”. O que me assustou ainda mais foram os comentários da população nas redes sociais nessas matérias que sabiam exatamente o que queriam.


Li comentários como: “essa é a política do PT que quer acabar com nossos jovens”, “por isso não deixo minha filha estudar na universidade pública, um antro de pervertidos”. E um grande receio em relação a essa repercussão negativa tomou conta dos meus pensamentos. Sou professora da rede pública da Bahia e sirvo à diversidade, tive medo, pois vejo o fundamentalismo religioso tomando conta do Brasil profundo. Adolescentes sendo expulsos de casa por serem LGBTQIAP+, ouço diversos relatos de automutilação de jovens que buscam simplesmente aceitação e amor.


Ser adolescente LGBTQIAP+, ainda mais nos interiores do Brasil, é quase que ter o direito à adolescência negado. É como se jovens não-cis não tivessem o direito de simplesmente serem adolescentes e terem os dedos constantemente apontados suas direções por não se encaixarem no padrão que nunca foi brasileiro, mas nos foi imposto goela abaixo desde a colonização europeia. Ver essa enxurrada de ódio nas redes, que impactariam diretamente a comunidade lgbt da minha sala de aula, me fez sim ter um pensamento retrógrado, e cheguei a condenar o evento de Tertuliana.


Sou uma pessoa falha, mas não sou ignorante. Alguns dias depois de Tertuliana educar com o cu na UFBA, a mídia noticiou a morte da Rita Lee, a Folha fez aquela matéria horrorosa. A mídia atrasada deu foco no uso de drogas que foi uma realidade na vida da artista. Mas os veículos de esquerda enfatizaram o quando Rita foi importante para popularizar e normalizar o prazer feminino! Ela na época da ditadura, com seus ovários, lançou o perfume do amor no Brasil que destilava ódio e torturava mulheres colocando ratos em suas vaginas. Houve quem disse na época: “essa drogada falando imoralidades em rede nacional”. Mas o que era realmente imoral? Rita Lee de quatro no ato, ou os torturadores abusando de corpos femininos nos galpões do DOPS?

Faz sentido dizer hoje que Rita Lee foi linha auxiliar da direita por falar de prazer feminino? Então, o que justifica a gente de esquerda condenar Tertuliana pelo uso do termo cu? Desde que o Bolsonarismo tomou conta do Brasil, parece que deixamos o medo e a baixa estima tomar conta dos nossos pensamentos. Quantas vezes, ao escrever um texto, ou me posicionar sobre certo assunto, eu me peguei pensando: “Não vou falar desse jeito, para não dar treta com o pessoal da direita”. E isso é perigoso, porque nós que temos o dever de fazer o novo futuro, tomamos as nossas decisões baseadas naquilo que os fascistas vão ou não achar correto. Nós, que devemos ser vanguarda, deixamos o conservadorismo ditar nosso posicionamento diante de tantas imoralidades que eles promovem no nosso país. Não acham?


Ainda assim, teóricos e estudiosos da Comunicação, com razão, me informam que neste momento de Brasil arrasado pelo fascismo, temos que adotar estratégias de comunicação que nos faça sair da bolha. Apesar do burburinho gerado pelo estudo da mestranda, a verdade é que continuamos falando para a mesma bolha, e com as redes sociais, é como se vivêssemos em mundos muito paralelos no Brasil. Notícias manipuladas e repercutidas nessas bolhas causam fenômenos diferentes. Eu concordo, os sistemas de comunicação educativa no Brasil precisam mudar e furar a bolha.


Mas essa responsabilidade não pode ser colocada apenas nas costas das pessoas que militam pelas causas identitárias. Deve ser política de estado favorecer uma comunicação respeitosa que ajude na quebra dos preconceitos, no combate à LGBTQIAP+ fobia e em outras demais causas, como a causa antirracista. Por isso, para além da roda de conversa, a comunidade trans da Bahia precisa estar presente nas políticas públicas e negociar com esse Brasil partido ao meio, os demais da esquerda precisam fornecer o suporte, ao invés de dar para trás diante das demandas.


Assisti à roda de conversa promovida por Tertuliana que está disponível no Youtube, na abertura do evento, a artista convida a plateia para dançar 3 músicas de sua autoria, a qual ela usa a palavra cu na composição. Esses minutos de ouvir as músicas me deixou desconfortável, logo eu, que me achava uma moça tão desconstruída, me vi colocada na caixinha do pudor. Ao iniciar a palestra, Tertuliana literalmente “dá na nossa cara”, e questiona porque temos pudor de uma estrutura que está presente nos nossos corpos e pode ser fonte de prazer. Ela traz ainda questões mais profundas abordando educação, valorização dos corpos trans, normalização do prazer de pessoas não cis, uma educação que vise o prazer e não a punição. Para embasar sua ideia, ela traz Ailton Krenak e Paulo Freire em uma mesma linha de pensamento.


Ela fala ainda que precisamos resgatar o prazer da vida e que a aprendizagem deve ser prazerosa sim! É para ser legal aprender as contas matemáticas, entender o funcionamento das células, estudar a história da Bahia. Quem inventou essa ideia que precisamos sofrer para aprender as coisas? Paulo Freire traz a pedagogia do oprimido, e Tertuliana nos traz a Pedagogia do Prazer, de usar nossos corpos para a nossa felicidade e para reivindicar o direito de existir no mundo. É isso que ela defende ao usar a frase “educando com o cu”.


Isso minha gente, não é transformar a sala de aula numa sessão de orgia. Na verdade, não tem nada a ver com isso. Essa pedagogia de Tertuliana é potente e libertadora, pois a partir do momento que nossos jovens entendem que seus corpos devem ser usados para o seu prazer e felicidade, eles cuidarão da sua saúde, evitando relações de trabalho escravizantes. Se a gente entende que nosso corpo tem direito de existência, nós não permitimos o abuso e denunciamos o assédio. Se a gente entende que nossos corpos vão válidos nas suas diversidades, não aceitamos a violência estética que o mundo capitalista nos impõe. Se meu corpo é meu templo de prazer, é um corpo válido para ocupar cargos políticos, para produzir conhecimento científico, para passar no concurso público, para ser cuidado, acolhido e respeitado. O prazer é libertador, é por isso que as políticas conservadoras querem limitar, vulgarizar e negar o prazer humano. É por isso que o corpo desnudo dos povos indígenas, a liberdade da dança dos povos africanos é tão condenada no processo da colonização. Pessoas que vivem com prazer são pessoas livres, o sistema busca escravizar pessoas.


Mas mesmo assim, sei que o uso do termo cu ainda vai afastar muita gente do debate. A negação dos nossos corpos é algo que foi imposto e está intricado no nosso psicológico. Por isso, é preciso tirar do orifício anal e dos nossos órgãos genitais o selo de vulgaridade. Quando colocamos nossos órgãos na caixa do tabu, deixamos que movimentos de extrema direita tomem conta deles. Afinal, foi no governo Bolsonaro que os índices de violência e estupro de mulheres aumentaram. Foi o governo Bolsonaro que acabou com as medidas de proteção à criança e adolescente, e há denúncias de pedofilia praticadas por pessoas ligadas e esse governo da morte. Foi o governo Bolsonaro que promoveu o aumento do assassinato de pessoas LGBT no Brasil. Quem é imoral, Tertuliana – que promove a pedagogia do prazer ou Bolsonaro – que promoveu um dos maiores genocídios do nosso povo nos últimos tempos?

Como Zoóloga, deixo aqui minha contribuição nesse caminho. Quando estudamos a evolução do Reino Animal, uma das primeiras coisas que observamos no desenvolvimento animal é a formação do ânus e da boca. Existem animais que apresentam apenas um orifício, que serve tanto para ingerir os alimentos, quanto para excretá-los. Dizemos que esses animais possuem sistema digestivo incompleto, é o caso as esponjas do mar, por exemplo. Já nos animais de sistema digestivo completo, a história de desenvolvimento segue padrões interessantes.


Existem animais onde a boca se forma primeiro que o ânus no desenvolvimento embrionário, a estes, chamamos de protostomados. Mas estudos recentes revelam que a maioria dos animais apresentam uma linha de células que determinam o eixo corporal, essas células formam tanto a boca quanto o ânus, e muitos animais formam boca e ânus quase que ao mesmo tempo, condição conhecida como anfistomia. No entanto, no grupo das estrelas do mar (Equinodermos), nos urocordados e nos cordados (grupo onde estão os seres humanos), ao que parece o ânus se forma primeiro que a boca. Por conta disso, nós, os peixes, as aves e até mesmo as estrelas do mar são chamados de Deuterostomados. Uma forma chique de dizer que o ânus é o nosso primeiro orifício.


A natureza parece brincar com essas caixas hipócritas que inventamos enquanto seres humanos. Mas para além disso, gostaria de fechar esse tema trazendo a atenção para Tertuliana Lustosa, essa pensadora que trouxe tantos debates importantes para a causa trans. Se eu tivesse que condenar alguém como linha auxiliar da direita, eu condenaria esses jornais caça cliques, que não tiveram a decência de chamá-la para uma entrevista e expor sua pesquisa. Um jornal particularmente foi imoral, chamou uma terceira pessoa para falar da roda de conversa, mas não quis chamar a travesti. Esse jornalismo podre, descontextualizado e fascista que é linha auxiliar da direita. São para esses jornalistas que temos que apontar o dedo e cobrar visibilidade trans. Eles lucraram com as matérias medíocres usando a pesquisa de Tertuliana.


Ao visitar as suas redes sociais, uma postagem da artista me chamou a atenção, ela tinha acabado de publicar um artigo cujo título começava com “Ela, a Mário de Andrade: revisitando a consciência nacional modernista”. Achei genial e até dei risada, não de deboche, mas daquela risada gostosa que só o povo lgbt sabe extrair da gente. A postagem infelizmente era para dizer que ela continuava sem bolsa para cursar o mestrado, o texto bateu forte, afinal quem faz e fez pesquisa com pouco ou nenhum financiamento, sabe a dureza de produzir conhecimento no Brasil. E é por isso, que convido você leitor e leitora a conhecer um pouco sobre Ela, a Tertuliana Lustosa.


FONTE:



FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Editora Paz e Terra, 2014.


KRENAK, Ailton. A vida não é útil: ideias para salvar a humanidade. OBJECTIVA, 2020.


NIELSEN, Claus; BRUNET, Thibaut; ARENDT, Detlev. Evolution of the bilaterian mouth and anus. Nature ecology & evolution, v. 2, n. 9, p. 1358-1376, 2018.

Lustosa, T. (2022). Ela, a Mário de Andrade: Revisitando a consciência nacional modernista. Revista Concinnitas, 23(44), 168-182.


Fonte da imagem: Tertuliana Lustosa, Travestruz, 2019, Monotipia

3 comentarios

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Ramon Argolo
12 may 2023
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Belo texto querida Jessika! Parabéns! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼

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Jac Gama
Jac Gama
12 may 2023
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Esse texto é um soco no estômago, não só para os fascistas, mas para a esquerda que propõe revolução. Essa é a verdadeira decolonialidade e o que sempre fomos, um corpo em movimento, um corpo que deglute corpos - nesse caso para a promoção do prazer- A antropoagia está nessa quebra do paradigma cisnormativo e heterossexual, o que tem de errado em sentir prazer pelo cu? Não concordei desde início com a mídia sensacionalista e fico muito triste em ver professores concordando (como testemunhei também) e usando esse argumento da chancela ao fascismo, isso porque não deveríamos culpar as vítimas. Sabemos que o corpo travesti é o mais visto como o não-corpo, o não-humano, tanto que Tertuliana é uma exceçã…

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
12 may 2023

Excelente texto! Um primor! Não me incomodei quando soube do título desse trabalho,porém,não deixei de pensar que ela seria detonada por isso. Você foi de uma concepção fenomenal sobre o assunto. Digno de solidez científica.

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SOTEROVISÃO
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