Uma vez no corredor da Escola de Teatro um colega me abordou empolgado para me convidar para assistir sua peça de conclusão de semestre. Me deixei contaminar pela sua emoção e ali ele me mostrou o seu card com uma arte interessante e um título, que eu nunca vi antes. Eu perguntei se era dele. Não, não era, inclusive me disse que era de um grande autor clássico. E perguntei porque não usou o título da obra original, ele achou melhor chamar assim, e também porque queria cobrar ingresso depois. Nada lhe disse porque nada foi me perguntado e também não tinha intimidade suficiente para tal. Eu engoli minhas palavras que tinha pra dizer e pensei que fosse um bom tema para se discutir. E depois dessa mesma situação muitas vezes se repetir eu finalmente decidi escrever. Talvez essa discussão se encerre no campo da Escola de Teatro, pois onde me insiro, e me experimento. Experimentar aqui é fundamental. Mas me preocupa que meus colegas só queiram ousar, sem aprender a escutar os mais velhos.
Depois de formado, todos nós artistas fazemos o que queremos de nossas carreiras e ousamos como bem queremos. E quem vai mostrar se é importante ou não aquele trabalho é o público. Então, por isso que talvez esse debate fique entre os muros da Escola de Teatro.
Uma das frases que mais gosto das aulas do meu professor Eduardo Tudella é: “Teatro não é sobre o que virá, é sobre o que foi.”. Esta frase me marcou profundamente. A juventude tem por características sempre querer inovar e buscar o diferente ou o mais ousado. Não que o teatro não combine com isso. Combina, vide o século XX. Mas ainda sim, se observamos o Teatro do Absurdo (termo cunhado por Martin Esslin), que era considerado vanguardista, reutilizava técnicas antigas de Teatro, como as de Shakespeare, por exemplo. Talvez, saber inovar, é uma visão que une o passado e o presente a partir do seu ponto de vista.
Eu já ouvi de outro artista de uma ou duas gerações depois, dizer que todas as histórias já foram contadas, e que o bacana é ver como nós a re-contamos. Muitos jovens perdem por não ouvir os mais velhos. E o oposto é também importante. Pois está nos novos tempos a preocupação com a mente, e o corpo, com o outro, com as pautas progressistas e de diversidade. Elas são extremamente importantes e saudáveis para todo mundo.
Mas há uma rusga aí entre as gerações, que precisa de muito afeto e entendimento de ambas as partes. Arrisco, que dos mais velhos seja necessária a paciência, e dos mais jovens a escuta. Mas todo mundo precisa escutar. Mas há outra coisa que atravessa a todas as gerações a falta de política cultural séria e a cultura do self-instagramável. Quem ainda quer escutar? Todo mundo tem um comentário, e todos precisam ter. Pra que? Ninguém sabe.
Ainda sim, nessa toada percebo o cenário, a velhice ainda reina sobre a juventude pois ela tem o que os jovens jamais poderão ter: tempo. E o tempo é Rei. E ainda por não ser mais um menino, ou tão jovem e também não ser um velho senhor, ainda. Permaneço no degrau da escuta desses mais velhos, preciso escutar, preciso baixar para ouvir. Eu escuto muito, e admiro muito também.
Enquanto escrevo, tenho o inenarrável prazer e honra de estar em cartaz nos fins de semana de Setembro com a primeira montagem baiana da peça “A Visita da Velha Senhora” de Friedrich Dürrenmatt, com direção teatral de Gil Vicente Tavares, dramaturgia de Cleise Mendes, direção musical de Luciano Salvador Bahia e Gil Vicente Tavares, cenografia de José Dias, Design de Luz de Eduardo Tudella, produção Selma Santos, assistência de direção e direção de movimento Barbara Barbará, assistência de direção teatral Artur Carvalho, visagismo Wilson d'Argolo, figurino de Zuarte Júnior, atuação de Ítala Nandi, Frank Menezes, Lucio Tranchesi, Celso Jr, Rui Manthur, Bira Freitas, Cláudio Cajaíba, todos estes quase sexagenários, sexagenários ou até com mais idade, com exceção do diretor, pela casca, mas que por dentro já é velho.
Todos estes senhores e senhoras fazem minha alma tamborilar com cada ensinamento seja dito ou de comportamento. Dizem que silêncio é patuá de gente velha. E antiguidade é posto. E no silêncio de suas ações eles praticam o caminho da arte milenar do palco. Ó Palco, deixa que estes corpos ainda tenham muita força, saúde e prosperidade para ensinar quem quer ouvir, e abrilhantar o público com atuações majestosas. O texto de Dürrenmatt não à toa, tem um salto no tempo, e todas as personagens são velhas. E logo a visita da velha senhora depois de 45 anos vem ensinar que o tempo pode até recuar, mas nunca parar. E só pessoas velhas poderiam entender isso. Só um prefeito velho poderia dizer com dor no coração ao seu amigo que o bem maior é mais importante do que a vida dele. Só um velho padre que poderia saber das dores de seu povo, e que ninguém resistirá à tentação de um milhão de dinheiros. Só um professor velho, poderia ver as raízes do problema na educação, e olhar para a sua própria humanidade anestesiada pelo álcool e sofrer em praça pública. Não à toa Schill tem que ser velho pois só ele sabe carregar nos ombros o tempo de seus crimes, e se chocar com a dor de seu retorno de um amor interrompido. Tanta dor, que essa humanidade carrega, a espera da visita da velha senhora.
Só estes velhos podem nos ensinar a dor desse tempo. E ao elenco jovem interpretado por estudantes da UFBA, Jamile Dionísia Ferreira, Gilberto Reys, Arthur Carvalho, Gabriel Nascimento, Fillipe França, Mel Dametto e Rodrigo Bittencourt, enfim, nós estamos ali para compartilhar um pouco dessa dor, e quem sabe aprender com ela. E a estes mais velhos, nós ensinamos sobre as redes sociais, sobre a escuta das novas pautas de diversidade, tudo que um jovem reinventa.
E como nós estamos para fazer Teatro, nós jovens não inventamos o Teatro, ele é o mais velho de todos. Nós re-contamos. Os mais velhos um dia foram jovens, e estão recontando as histórias até hoje. A Visita da Velha Senhora já foi montada e remontada muitas e muitas vezes por todo o mundo, seja no cinema ou no teatro. E não perdeu sua qualidade universal, e atualíssima. Podemos até mudar o nome, mas ainda sim será uma puta bilionária a ceifar nossa dignidade por dinheiro. Nada muda, mas ainda é novo, é vivo, está no palco para jovens e velhos. Enquanto, grande parte dos novos artistas perdem tempo, por tentarem inventar a roda, a roda gira, os mais velhos ainda estão aí para nos ensinar, e precisamos aprender para ter a sorte de um dia sermos velhos.
Fotos: Edvalma Santana
E seguem os cartazes de Teatro:
Comentarios