Você provavelmente já sabe do caso do jogador Vinícius Júnior e os insultos racistas que sofreu em campo na Espanha. Em pleno 2023, com um planeta dominado por democracias liberais e seus valores e instituições da diversidade, comportamentos assim não podem existir, nem como simples exceção. Mas não adianta apenas ser contra, não adianta apenas ser “anti-racista”, já que uma pergunta mais básica paira no horizonte: “Afinal, o que é o racismo?”. Assim como acontece com “poder”, “democracia”, “ética”, “cultura” e “sistema”, temos a sensação de intimidade com a palavra, como se fosse óbvia ou até natural. Pode não parecer, mas a nossa atitude anti-racista depende de nossa definição de "racismo", da mesma forma que estratégias de guerra dependem do tipo de inimigo à sua frente. Ou seja, inimigos diferentes pedem por estratégias diferentes. Isso significa que “prática anti-racista” não é um termo óbvio, lançado em um vínculo de autoevidência, como sugerem lá fora, mas oscila conforme as definições disponíveis na mesa. Dependendo de sua definição, novas estratégias brotam do cenário acadêmico, político e até pedagógico.
Depois de observar dezenas e dezenas de comentários na internet sobre o caso de Vinícius Júnior, eu percebi um certo de tipo de padrão no ar, algo meio repetitivo. Quando olhamos com calma, existem três grandes abordagens nos bastidores dos posts, principalmente no Twitter. Ou seja, por trás dos infinitos comentários críticos aos racistas espanhóis, existem três grandes premissas diferentes, embora complementares. Existe a definição mais popular, meio senso comum, de que racismo é um simples problema de caráter, produzido por pessoas ruins e sem amor ao próximo. Nessa definição, é impossível redefinir as circunstâncias, porque os racistas são considerados como essencialmente maus, pessoas incorrigíveis. Existe também a definição um pouco mais elaborada, e que gosto de chamar de epistêmica, entendendo o racista como alguém desinformado, burro, incapaz de compreender a complexidade das democracias liberais. A terceira abordagem, essa bem mais técnica, e sociológica, entende o racismo agora como uma estrutura, um arranjo poderoso nos bastidores da vida cotidiana, nas entrelinhas da experiência. Mas e se eu dissesse a você que existe uma quarta forma, uma forma psicanalítica, digamos assim? Em outras palavras, existe uma quarta maneira de ser anti-racista.
Segundo Fanon, em seu clássico “Peles Negras e Máscaras Brancas”, publicado em 1952, o racismo não deve ser visto como um simples problema de caráter, ou um deslize epistêmico, de falta de inteligência, mas um sintoma, um sinal de um corpo desajustado, sem muitas opções simbólicas. Como diria o próprio Fanon, diante de um “certo sentimento de inquietude [...] eles se voltam para o racismo como uma reação de defesa”. Isso nos leva direto não apenas a uma outra maneira de compreender o racismo, mas também novas formas de práticas “anti-racistas”. Não acredita? Então, vamos aos exemplos.
Imagine que você chegou em uma sessão com um psicanalista, sentou na cadeira de forma confortável, ansioso com as possibilidades daquele encontro. Depois de alguns segundos, você escuta a seguinte série de perguntas: “Fulano, quando você tem raiva, nos instantes mais extremos do dia, por que você não esfaqueia alguém?” “Ou, no mínimo, por que não oferece um tapa?”. Outro exemplo... “quando você acha alguém bonito na rua, por que você não salta sobre a pessoa e rasga a sua roupa?”. A resposta mais popular, nesse cenário, é a seguinte: “eu não faço essas coisas porque tenho um bom coração, sou do bem”. Mas, em termos psicanalíticos, ser uma boa pessoa não é critério explicativo, mas apenas um efeito, uma miragem produzida por algo mais fundamental.
Segundo Freud, em seu clássico "mal-estar na civilização", o mundo lá fora oferece a cada um de nós formas convenientes e autorizadas de descarga de energia, sugerindo a arte, ciência, trabalho e outros elementos responsáveis por esse processo que Freud chamou de “maternagem” ou “mecanismos de defesa”. Existem, portanto, mecanismos autorizados, válvulas de escape “saudáveis”, como jogos, bebidas e dezenas de outras opções no cardápio civilizacional. Mas e se, por acaso, essas válvulas não funcionarem bem? E quando os mecanismos mais saudáveis não aparecem no meu campo de experiência? Segundo Freud, nesse momento o indivíduo desenvolve caminhos próprios, muitas vezes antisociais, comprometendo o mundo e a si mesmo. Segundo Fanon, o racismo é como um TOC (transtorno obsessivo compulsivo) ou como uma síndrome do pânico ou como uma psicose específica. Todas são formas de organizar a experiência, embora formas perigosas, demandando reajustes.
O objetivo do psicanalista, nesse cenário, é oferecer ao indivíduo formas mais saudáveis de conexão com o mundo, formas mais criativas e até democráticas, formas que agreguem, ao invés de desintegrar. A estratégia psicanalítica não tem a ver com o caráter, ou com a capacidade cognitiva de alguém, ou com alguma análise estruturalista qualquer, mas com um determinado tipo de “arranjo libidinal”, nas palavras do próprio Freud. A solução, portanto, envolve uma mudança na forma como o mundo se organiza, muito além de simples análises estruturais. Isso significa estratégias que fortaleçam instituições como a família, a ciência, a arte, ou seja, é preciso um mundo que ofereça aos indivíduos formas saudáveis de conexão, um mundo não apenas atravessado por suspeitas, críticas e incertezas, seja no campo econômico ou cultural. Se as pessoas insistem em comportamentos estranhos ou agressivos, sejam eles um TOC, ou uma prática racista, tem algo de errado no próprio mundo, uma falta de opções simbólicas, de links corporais.
O problema do racista não é cognitivo, ético, nem mesmo estrutural, mas ontológico, já que o racismo é um efeito de um mundo desintegrado, de uma realidade sem opções. Assim como outras práticas violentas, exageradas e perigosas, o racismo é sempre um sintoma de algo mais profundo. Como consequência, nenhum “ismo” é a causa do problema, mas o seu efeito imediato, o resultado de um mundo que precisa de corpos mais saudáveis, corpos com mais opções. Lembre-se... “por que você não rouba um mercado? Por que você não mata alguém? Por que você não se masturba na rua?” Segundo Freud, é simples... porque a sua economia desejante está bem distribuída, fixa em práticas institucionalizadas, convenientes ou até democráticas. Talvez você tenha dez gatos em casa, talvez você beba cerveja com seus amigos, talvez você poste todo dia em suas redes sociais, ou tenha milhões de outras formas de lidar consigo mesmo, formas mais saudáveis, autorizadas. Por isso precisamos ir além do discurso do caráter, do discurso epistêmico, ou do discurso estrutural... Só existe uma forma de resolver tudo isso... Só FREUD EXPLICA!!!
Referência da imagem:
https://www.soteroprosa.com/single-post/s%C3%B3-freud-explica-o-caso-do-racismo-com-vin%C3%ADcius-j%C3%BAnior
Fantástico! Obrigado por esse texto ✊🏿🖤
Muito bom!