A série da Netflix Bebê Rena (darei alguns spoilers) está rendendo muito, especialmente porque apresenta uma versão invertida do que costumamos ver sobre a relação algoz e vítima. No drama em questão, um homem é perseguido por uma mulher e passa por diversas situações abusivas, das mais sutis às mais perversas. Quem assiste aos capítulos, é tomado por uma enorme angústia pela situação do protagonista, ao ponto de se deparar com uma narrativa do passado dele que indica as mazelas de uma mente em sofrimento que o torna uma vítima recorrente de abusadores.
No entanto, existe uma revelação paulatina sobre a posição do abusado como alguém que, em certa medida, se coloca em situações destrutivas pelo desprovimento de auto-consciência das suas dores e por recorrentemente evitar lidar com suas sombras. Nesse ponto, o espectador assiste ele ser uma pessoa inconsequente, desrespeitosa, desajustada e incoerente com aquelas que lhe querem bem e o acolhem, como o caso de duas ex-namoradas. O rapaz possui uma tendência a negar sua vulnerabilidade e interromper qualquer tentativa de intimidade que chegue a esse lugar. De forma geral, fica-se a impressão de que esse é o maior sofrimento do protagonista, mais do que a própria perseguição que vive com a mulher abusadora.
Assistir essa história me transportou mentalmente para várias situações que vivi em relacionamentos com homens, de namorados a amigos próximos. Eu vi no rapaz da série os olhos e os movimentos de vários deles. Aquele corpo pendente que se encolhe no confronto. O olhar perdido quando a dor está latente e alguém lhe pergunta se ele está bem e ele escolhe o silêncio. A implicância nos dedos levantados quando confrontado sobre as bobagens que está fazendo e como isso afeta as pessoas ao seu redor. Eu sei bem o que é estar ali, de frente com um homem de dores que se esconde na mentira, ou no medo, ou na raiva, ou todos esses elementos juntos.
Bebê Rena é uma história que fala sobre a jornada de vulnerabilidade de um homem, algo que parece impossível acontecer na vida real, até porque as conversas da sociedade sobre derrubar o machismo tem apontado claramente os males da masculinidade tóxica porém, seu contraponto, fica à mercê de cada homem descobrir o que fazer. Basicamente: sabe-se o que é o homem mau, mas, quem é o homem bom? Essa é a pergunta que fica no ar e que percebo poucos homens se endereçando a ela. Os conscientes do seu machismo não querem ser maus e, por isso, tentam vigiar seu comportamento para que não acessem esse lugar. Tamanha dedicação lhes tira a energia sobre entender o que é ser um homem bom, ou, o que é ser um homem em si!
É bem nesse ponto que os conversadores estão ganhando um espaço folgado na mente da nova geração, como aponta Alice Evans, pesquisadora da Universidade de Stanford que indicou uma tendência das “mulheres da Geração Z terem posturas mais progressistas, enquanto os homens desta geração apresentam uma inclinação conservadora”. Por mais desprezível que os discursos deles sejam, não podemos negar que eles estão empenhados em ensinar o que é um “homem de verdade”. De certa forma, ainda que bizarra, eles dão alguma resposta. A doutrinação dos conservadores acolhe quem estiver meio perdido nos debates e literalmente prescreve uma lista imensa de qualidades e atitudes para um homem, com muitas ressalvas sobre como devem se comportar diante das mulheres e não serem submetidos a elas. É péssimo? Sim! Mas, é alguma resposta e parece que os homens estão ansiosos por isso.
É claro que há aqueles que não vão tolerar esse tipo de discurso e escolherão outras formas de achar o homem bom. Porém, por algum desajeito, acabam pairando nos espaços que as mulheres estão construindo. Eles aparecem nas aulas de yoga, nos cursos sobre autoconhecimento, nas terapias sobre emoções, e qualquer outra dinâmica que possa afastá-los do homem mau. Mas, aí vem o pulo do galo. Normalmente, eles são os poucos homens desses encontros e acabam se tornando o “queridinho” das mulheres. Elas os enxergam como um aliado e lançam chuvas de elogios pela iniciativa de estar ali, querendo ser uma pessoa melhor. Com toda essa rasgação de seda, eles se sentem especiais e aí não se abrem para as suas vulnerabilidades.
És o ponto essencial para a virada do homem mau para o homem bom e que fez toda a diferença na vida do personagem da série: a vulnerabilidade. Quem é essa bendita que tem feito mulheres aprenderem muito mais sobre si mesmas, graças a uma socialização feminina saudável, longe da rivalidade e da competitividade tradicional, e que mete tanto medo em homens de todas as idades? A socióloga Brené Brown, pesquisadora do tema há mais de vinte anos, explica a vulnerabilidade como um mecanismo de exposição, de si para si, das dores, medos e inseguranças, algo que sinaliza nossa frágil humanidade. A autora indica que negar esse aspecto implica que a vergonha sobressaia, um mecanismo que, quando acionado, intenta anular as emoções sentidas e as escondem por detrás de uma armadura de perfeição que falsamente dá a sensação de conforto e controle.
O personagem do Bebê Rena escancara o tamanho de sua muralha anti-vulnerabilidade em várias cenas da série, especialmente quando é confrontado pelas suas ex-namoradas. Elas o avisam, em muitos momentos, que há algo de errado no seu comportamento evitativo, ou como seu sofrimento pela perseguição da mulher abusadora acontece por conta de um lado dele que se alinha àquela relação destrutiva. Essas personagens representam bem como as mulheres estão mais conscientes dos mecanismos emocionais e entendem melhor sobre responsabilidade afetiva.
Felizmente, existe uma evolução da figura masculina da série, ao ponto dele chegar nesse lugar de vulnerabilidade quando exaure suas forças em lidar com a situação de terror com a stalker. O rapaz se expõe para várias pessoas e aquilo mexe na sua relação a respeito da dor e do sofrimento. O processo se mostra tão profundo que ele encara seus pais e conta-lhes segredos sobre seu passado, sendo extremamente vulnerável diante daqueles que o criaram. Nessa cena, acontece uma improvável conexão dele com o pai, que se caracteriza por ser um homem frio e grosso. Na dor, os dois se reconhecem.
Por fim, eu fecho minha análise com uma pontuação que amarra tudo o que eu disse com o nome da série, Bebê Rena. O que é um bebê rena? É um ser pequeno, frágil e dependente do seu rebanho. Com uma leve pesquisada na internet, descobri que esse filhote é muito suscetível a ser atacado por predadores, como águias, lobos, ursos e muitos outros. Diante da história da série, enxergo a simbologia do bebê rena como a fragilidade masculina pouco ou nada acessada a séculos pela civilização ocidental. Ainda que a rena seja um animal poderoso, com ameaçadores chifres, quando infante, precisa de cuidado e atenção redobrados. No fim das contas, cada sujeito que quer sair do homem mau para o homem bom só terá oportunidade para tal se olhar, identificar e reconhecer seu “bebê rena”, sua dimensão frágil, dolorida e vulnerável. Que assim seja!
FONTE:
BROWN, Brené. A coragem de ser imperfeito. Nascente, 2023.
Maravilhoso texto. Eu amei o filme e a análise que traz é bem pertinente.
Pois é,Carla. De fato,há uma fragilidade e um vazio na masculinidade. Tanto que tem imbecil afirmando que precisamos de "homens com testosterona".