Embora seja muito popular nos corredores universitários, muitas vezes até uma insígnia usada no peito com orgulho, “DEBATE” parece uma palavra de épocas antigas, algo meio arcaico, empoeirado, coisa talvez de figuras caquéticas e clássicas. O que muitos chamam hoje de “debate” resgata apenas um aroma frágil e distante perdido nas areias do tempo, nada mais do que encontros onde indivíduos compartilham de experiências e queixas, numa espécie de terapia coletiva. Na prática, ideias não sofrem ameaças aqui, nem mesmo um sinal breve de alerta, mas são reforçadas constantemente por sujeitos ansiosos por validação. Sem dúvida, esse modelo mais “terapêutico” de contato é importante, e até indispensável, mas não chamo isso de debate. “Debate” é algo arriscado, perigoso, diria até assustador, como se fantasmas brotassem de certas palavras ou conceitos, cada uma delas escondidas nas sombras da linguagem.
“Debater” é um verbo ácido, diferente de qualquer outro, já que não reflete um simples encontro de indivíduos em torno de um tema aleatório, mas sim um mergulho de cabeça no limite do meu próprio senso de realidade, correndo sempre o risco de erro e contradição. Ou seja, todo debate tem um custo embutido, um preço amargo a ser pago, seja ele psicológico ou até mesmo existencial, um tipo de corda bamba onde o menor deslize é uma sentença imediata. Da mesma forma que no equilibrista nietzschiano, o perigo apenas desperta o olhar atento de Zaratustra, numa mistura cheirosa de medo e desejo. Se esse custo não existe, se não faz parte do horizonte do meu fluxo de circunstâncias, então “debate” não é bem a palavra certa nesse cenário, mas talvez “entrevista”, “bate-papo”, “roda de conversa”, “terapia”. E repito... essas formas de contato são todas importantes, na fronteira do necessário, mas não devem ser chamadas de “DEBATE”. Não acredita? Então, vamos lá...
Com o surgimento da nova esquerda na década de 60, e sua infinita bagagem de temas identitários, o campo acadêmico se tornou sensível, muito sensível. Sem dúvida, essa sensibilidade toda não é um desvio ético ou epistêmico, não é um problema de caráter ou de inteligência, muito pelo contrário. Faz sentido pensar em autores e conceitos como escudos e espadas diante de um mundo injusto, faz completo sentido instrumentalizar certas teorias de uma forma que organize minha própria existência. Não existe qualquer problema nesse gesto terapêutico nos bastidores de cursos de humanas e sociais, talvez seja até um mecanismo de defesa darwiniano, evolucionário. Por isso, ideias se conectam de uma forma visceral com as pessoas, com seus corpos, acompanhadas de conforto psicológico, propósito e toda uma estrutura simbólica importante. Mas nem tudo são flores... Nesse cenário de “autoajuda”, o debate é imediatamente digerido como um insulto, um gesto violento que nega ao outro a possibilidade de existir. O vínculo com certas teorias é tão grande, o nível de dependência tão alto, o investimento de expectativas tão astronômico, que toda e qualquer crítica é automaticamente classificada como um ataque pessoal, uma violência insuportável. Por esse exato motivo, a maior parte dos “debates” acadêmicos hoje, na prática, nunca foram debates, mas grandes encontros terapêuticos de indivíduos em alguma situação de violência sistêmica (raça, gênero, classe, religião, cultura, linguagem, peso, condição física). E, por favor, não me leve a mal... tudo isso é indispensável, inclusive porque minorias atravessam situações traumáticas e injustas. Sem dúvida nenhuma elas precisam, ou melhor, merecem cuidado, carinho e um espaço de representatividade, mas não chamo esses momentos de DEBATE.
Se você insistir na existência de debates mais clássicos, ou seja, encontros críticos que coloquem o outro contra a parede, grandes colisões de ideias contrárias, você imediatamente recebe o rótulo de estranho, talvez até “polêmico”, ou seja, apenas uma criatura irritante sedenta por desespero. Dentro dessa atmosfera liberal ser uma boa pessoa significa respeitar a forma como cada um elabora suas ideias, tudo isso em um ritmo horizontalizado de infinitas possibilidades. Nas democracias liberais cada centímetro do mundo lá fora é privado, da religião ao gênero, até mesmo as narrativas que escorrem da minha boca, ou seja, eu tenho a minha e você tem a sua. Por que brigar, por que tanto stress em torno de choques de ideias? Como sujeito democrático eu devo apenas reconhecer a privacidade de certo conjunto de palavras, o direito delas de existir horizontalmente em um espaço de acolhimento. Desde que todos respeitem essa linguagem íntima, o confronto de ideias é visto como, no mínimo, desnecessário e, no máximo, uma violência arrogante. Em outras palavras, “Debate” vira sinônimo de uma armadilha colonizadora de destruição de histórias e corpos, nada mais do que uma estratégia de enfraquecimento de resistências. Ao menos é assim que a esquerda liberal enxerga a ideia clássica de “Debate”, ou seja, como um simples peso desnecessário no caminho de infinitas narrativas íntimas. Inclusive, esse é o modelo de política das democracias liberais hoje, um grande condomínio onde os inquilinos se trancam em seus apartamentos privados, muitas vezes em suas cavernas identitárias, sem qualquer necessidade de contato ou confronto, com exceção de um raro “oi” ou “bom dia” no elevador. Desde que você não interfira no meu apartamento, faça o que quiser dentro do seu. Por algum motivo estranho muitos chamam isso de “respeito”, ou até “diversidade”, embora eu prefiro o termo “privatização da esfera pública”, uma característica muito comum em épocas neoliberais. Debates se retiram do ambiente público e se arrastam até as profundezas da minha subjetividade, fortalecida pela única instituição ainda sólida nesse mundo capitalista, o último refúgio institucional em tempos tão contemporâneos: o INDIVÍDUO, o EU SOBERANO!!!
Como qualquer propriedade privada, minha linguagem no capitalismo não pode ser invadida por ninguém, isso é crime (linguístico). Se fulano entrar, EU (SOBERANO) preciso fazer o convite, seja ele verbal ou com um cartãozinho purpurinado com o endereço, dia e horário. Esse outro apenas coloca os pés no meu território quando, como e onde eu quiser, nunca antes ou depois. "Por favor", diz a criatura liberal, "não ameace minha casa simbólica, não force minhas janelas, ou destrua minhas portas, assim como não exploda meu telhado e as paredes ao redor". Em outras palavras, quando o assunto é "debate", ao menos aos olhos da esquerda liberal, o interlocutor externo tem apenas duas opções simples: a) ou entra amigavelmente nos limites da minha linguagem, reforçando minhas expectativas, da mesma forma que entraria na minha casa ao meu convite ou b) permanece longe de mim e das minhas ideias, escrevendo sobre outros assuntos de outros universos em suas próprias cavernas subjetivas. Resumindo... "não pise no meu terreno linguístico seu comunista, porque essa cadeia de significantes aqui é propriedade privada!!!!!!"
O palco acadêmico mudou tanto nas últimas décadas que o “DEBATE” desapareceu por completo, a não ser como nome, como uma carcaça vazia circulando por mensagens, panfletos e cartazes. Imagine agora o seguinte cenário (nada) hipotético:
Joãozinho Progressista da Silva anuncia na sala: “Vamos ter hoje às 15:00 um debate sobre gênero no auditório da Faculdade Metafórica”.
Tem certeza, Joãozinho? Então, vamos lá... chegando no auditório repleto de gente, vozes por todos os lados, e uma expectativa lá no teto, encontramos no “debate” todos os participantes sentados de forma comportada, todos pós-estruturalistas de uma esquerda liberal acolhendo as mesmas ideias, perseguindo os mesmos inimigos, chegando às mesmas conclusões. Qual a diferença entre eles? Simples... os exemplos, metáforas e experiências lançados na mesa, embora a matriz epistêmica de fundo, aquela que organiza toda essa bagagem, segue o mesmo ritmo insistentemente foucaultiano. Detalhe importante... eu não estou dizendo que essas análises pós-estruturalistas são falsas ou malvadas (crítica de direita), mas apenas previsíveis. “Falsa” é uma categoria epistêmica, “malvada” é uma categoria ética e “previsível” um critério estético. Certos “debates” apenas existem porque preenchem uma função básica: reforçar as expectativas do público e um certo desejo coletivo de acolhecimento, independente dos fatos em jogo serem verdadeiros ou falsos. Eu não quero um espaço onde minhas ideias sejam ameaçadas, mas reforçadas por membros respeitados, mestres, doutores e pós-doutores. Eu quero que minhas ideias acumulem capital acadêmico, preciso desse reconhecimento, preciso desse suporte simbólico, caso contrário tudo se torna frágil, contingente, como areia de praia que escorre por entre os dedos da criança curiosa!!! Não existe nada mais delicioso do que ouvir um pós-doutor validando minhas mais profundas expectativas políticas e até pessoais. Imagine a sensação de conforto quando você descobre que um filósofo branco, careca e francês se conecta com suas frustrações de infância? Eu chamo esses teóricos[1] de “coaches progressistas”, figuras que te ajudam a organizar suas frustrações, a ter um foco na vida, acreditando em si mesmo e em seu potencial de criatura empoderada. Sem dúvida, nós precisamos disso, de mensagens assim, mas tudo tem um preço, até mesmo sua paz de espírito...
Esse cenário confortável, ao lado de gigantescos algoritmos em plataformas como Twitter, Instagram e Tik Tok, produz uma geração de indivíduos convenientemente organizados em suas conveniências... que conveniente!!!! O campo universitário, um dos poucos espaços no mundo dispostos a desafiar tudo isso, oferecendo um pouco de respiro em tempos tão sufocantes, hoje tropeça em suas próprias pernas, não oferece nenhuma barreira, mas apenas reforça nossa coletânea de pensamentos algoritimizados. O debate como “crítica” não deve ser visto como sinônimo de um modelo europeu e colonizador, muito pelo contrário. É uma forma de interação resistente às conveniências de um regime neoliberal com seu “EU soberano”, uma forma que lança no meu caminho obstáculos, forçando meu senso de realidade a ir além da expectativa, goste eu ou não. Resumindo... a ideia de “roda de conversa”, ou “encontros sociologicamente terapêuticos”, ou outros percursos meio “auto-ajuda”, muitas vezes pode reforçar a lógica de uma matriz capitalista, um espaço todo ele tecido em torno de minhas demandas, ou seja, uma festa de algoritmos poderosos. Graças ao debate sou lembrado de um mundo lá fora escorregadio, autônomo, recalcitrante, muito atém de sistemas, estruturas e interpretações. Na verdade, é justamente aqui onde mora meu senso crítico. Eu não penso porque sou lindo, ético, cheiroso ou inteligente (lembrem, eu não sou liberal!!!!), mas como resultado de um mundo que não me deixa em paz, que resiste aos golpes das minhas conveniências. Isso, companheiros, é ser um cientista, ou seja, um verdadeiro mergulho em uma rede complexa de humanos e não-humanos recalcitrantes, resistentes... teimosos!!! Sem teimosia não existe conhecimento, pelo menos não o científico. Por esse motivo, hoje é necessário mais do que nunca um circuito fortalecido de debates!!! Claro que isso não implica uma recusa de outras modalidades de encontro, como aquelas no ritmo de "auto-ajuda", mas apenas expande nosso leque de opções dentro do universo acadêmico.
[1] Sempre lembro nos meus textos que minhas críticas nunca são direcionadas a figuras como Foucault, Deleuze, Butler, e muitos outros, mas à forma como são instrumentalizados por indivíduos amadores, sem qualquer tipo de preparo no campo das ciências humanas e sociais. Ou seja, o “coach progressista” não se refere a Foucault, mas à maneira como ele circula pelos corredores universitários.
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