* Por Antonio Danilo Santana
Julho de 2023. Em meio à “onda rosa” despertada pelo lançamento do filme sobre a icônica boneca Barbie, uma matéria da Rede Globo sobre o tema nos lembra: “entre muitas críticas, como aquelas relacionadas à demora em lançar uma versão negra, por exemplo, a boneca brilha desde o finalzinho dos anos 50”. Nos estudos de semiótica, aprendemos que o ícone carrega em si não somente a capacidade de representar um objeto determinado, mas, e sobretudo, a gama de sentidos que transborda a própria forma desse objeto. Dessa forma, a fala destacada acima encarna muito mais que uma problematização contestatória acerca de um dado fenômeno pop. A matéria da emissora carioca traduz toda uma era, a era da hegemonia da esquerda liberal.
Quando a Barbie surgiu, estava ganhando corpo a luta dos negros norte-americanos pelos direitos civis. Entre batalhas anti-coloniais a explodir em várias partes do globo, a década que estava para nascer teve seu desfecho com jovens franceses desafiando o status quo ocidental, porém, muito mais do que isso, germinando o que viria a ser a ideia, o conceito popular e pós-material de autonomia absoluta dos corpos. E sem saber, a esquerda, num processo irreversível, passava a devorar um de seus próprios e mais fortes pilares, isto é, a perspectiva de mudança social baseada na subjetividade coletiva. Sim, mas o que isso tem a ver com a Barbie? Você deve estar se perguntando. Tem tudo a ver, e explico nas próximas linhas.
O liberalismo político conseguiu, sem ter montado uma trincheira sequer, através dos braços da própria esquerda, a exemplo de sua corrente pós-estruturalista francesa, permear os setores social-democratas, socialistas e comunistas com a ideia ou conceito de autonomia absoluta do indivíduo. Neste sentido, a perda de força de sindicatos e da própria forma-partido não se deu a partir da ascensão dos chamados novos movimentos sociais, pela queda do chamado socialismo real no Leste Europeu ou tampouco através do avanço das políticas neoliberais no plano da economia. Sustento a tese de que, justamente num sentido inverso, foi a própria corrosão interna de toda a cosmovisão baseada na comunidade, na solidariedade e na luta coletiva voltada à transformação das estruturas sociais que possibilitou essa mudança de paradigma – os chamados novos movimentos sociais, lembremos, têm lutado, por óbvio, coletivamente, mas por representação e obtenção de ganhos através do Estado, não por transformação desse próprio Estado e/ou das relações de produção que o sustentam.
Não foram tais fenômenos que tomaram de assalto o domínio da realidade, mas a colonização da esquerda pela percepção atomizante de indivíduo do liberalismo. Portanto, a questão encontra-se, principalmente, no campo dos afetos. Nestes termos, o que possibilitou certa naturalização da crítica midiática à demora em a empresa responsável pela produção da famosa boneca incorporar demandas de diversidade não foi um avanço da esquerda no campo dos costumes e da cultura, mas, ao contrário, a manifestação de um liberalismo radical e disfarçado.
A prova de que estou certo no que afirmo acima é que a ideia de cobrança diante da demora do surgimento dessa versão negra (ela já existe há alguns anos, é importante destacarmos) em pleno Ocidente, num país de maioria branca, versão “identitária” de um ícone pop que encarnaria a representação das mulheres da elite dessa sociedade, nunca tenha se dado, enfim, sob uma estrutura discursiva guiada pela ideia de uma personagem que encarnasse valores coletivos negros, mas, antes, tenha consistido sempre numa busca pela transmutação (que se materializou com o lançamento da versão em questão) de um corpo feminino e negro sob a estética de riqueza ocidental, o ideal branco do que é ser mulher, ser rica e ser elegante, ainda que essa versão negra tenha vindo a incorporar elementos estéticos afrocentrados – inclusive estes, sempre, sempre estiveram voltados à reprodução do padrão dominante, pois, neste caso, por mais paradoxal que pareça essa afirmação, o enegrecimento da boneca tem funcionado justamente como sinal do que é ser mulher, branca, rica e elegante, por meio da reprodução da lógica liberal ventilada como pauta da esquerda (o eu absoluto, substrato da cultura judaico-cristã europeia).
Em tempos identitários, a cobrança pela diversidade é a cobrança pela representatividade via indivíduos absolutos, atomizados. A representatividade, assim, antes de carregar consigo a potência de mudar estruturalmente a realidade, reifica todas as suas estruturas. Neste sentido, a crítica ao fato de o mundo se tornar rosa para saudar a Barbie, que tenho visto e ouvido em alguns sites e redes sociais, é totalmente descabida, pois bem antes de termos chegado a essa universalização e estetização padronizante da sociedade, a esfacelação da subjetvidade coletiva, sólida e baseada na ideia de comunidade, sob o disfarce de conquistas da esquerda liberal, já triturou nossas possibilidades verdadeiramente libertadoras. Quer vestir rosa? Quer homegaear a Barbie? Fique à vontade, pois esse, certamente, é o menor dos nossos problemas, enquanto sociedade, e, pra falar a verdade, até nos ajuda a escapar um pouco das agruras do real. Afinal, o que uma boneca nos faria de mal, não é mesmo?
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* O autor é mestrando em Ciências Sociais pela UFBA. Instagram: antoniodanilopereirasantana
Link da imagem: https://olhardigital.com.br/2021/07/09/cinema-e-streaming/barbie-live-action-margot-robbie-diretora/
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