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Foto do escritorEquipe Soteroprosa

"SE PODES OLHAR,VÊ. SE PODES VER,REPARA":JENNIFER NIVEN E A RESSIGNIFICAÇÃO




“Aprendi que há coisas boas neste mundo, se você procurar bastante. Aprendi que nem todo mundo é decepcionante, inclusive eu, e que uma elevação de 1.257 pés no solo pode parecer mais alta do que um campanário se você estiver ao lado da pessoa certa.”[1]


Tomei de empréstimo a epígrafe do texto premiado ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, do célebre escritor português José Saramago, para iniciar uma reflexão sobre o filme ‘Por Lugares Incríveis’. Essa produção foi lançada pela Netflix em 2020 e é baseada no texto homônimo de Jennifer Niven, publicado no Brasil em 2015, pela editora Seguinte (hoje, pertencente à Companhia das Letras). Aqui temos um drama romântico que gira em torno das histórias de Theodore Finch e Violet Markey, que se encontram, pela primeira vez, diante um evento traumático: a morte da irmã de Violet, Eleanor Markey.


Após esse encontro inesperado, Finch aproveita a oportunidade de um trabalho de geografia em dupla para se aproximar de Violet, para espanto dos amigos dela, dado que Finch, nessa escola, é tido como um ‘anormal’, ‘problemático’, ‘esquisitão’. Violet até tenta fazer o trabalho sozinha, mas não consegue e acaba aceitando a proposta do trabalho em dupla com Finch, após certa persistência dele. Esse trabalho consistia em visitar dois lugares considerados de grande significado e importância para a cidade e depois produzir uma apresentação conjunta dessa ‘experiência geográfica’ para a turma.


Finch e Violet se aproximam cada vez mais durante esse trabalho, a ponto de visitarem outros lugares ‘fora’ do que tinham acordado para esse trabalho. Lugares que Finch conhecia e quis apresentar para Violet, no intuito de mostrar um pouco do seu mundo e de si para ela, dentro de uma experiência muito diferente do que ambos tinham vivenciado até então: seja Violet, que após a morte da irmã acabou ficando muito reclusa; seja Finch, que após sucessivos problemas familiares paternos e bullying na escola e colegial e também pela sua condição de alguém que sofre de transtorno de personalidade e ansiedade, se furtou a usar determinados locais não-visitados como um espaço de reforço da sua essência e de seu self, dentro da proposta de estar no controle.


Ao longo da trama, o relacionamento amoroso entre ambos começa a se intensificar a tal forma que Violet enfrenta e supera os traumas ligados à morte da irmã, e Finch começa a ter um certo ‘choque’ de realidades: a realidade de julgamento, perseguição e violência com a nova realidade do relacionamento com Violet, que põe em xeque os pressupostos de que ‘alguém como ele não teria alguém que o acolhesse, o entendesse e o faria feliz de forma plena’. Esse choque de realidades, ou até de personalidades, que acontece na mente de Finch, passa a afetar o relacionamento com Violet e também com os seus amigos, algo que fica evidente com os ‘sumiços’ e 'aparições' repentinas do Finch.


Ao narrar a história de Violet e Finch, tanto o filme quanto o texto da Jennifer Niven perpassam uma discussão e reflexão interessante sobre algumas questões importantes, especialmente do ponto de vista da saúde mental, que é afetada por traumas (sejam eles familiares, eventos repentinos, abusos e violências em ambiente escolar e social, etc).


É possível fazer conexão com a empatia, que é a faculdade humana de se colocar no lugar do outro; com o egoísmo inconsciente, que é um comportamento quase automático que acontece quando nós só aproveitamos somente as emoções e experiências positivas oferecidas pelo outro, sem reparar, à primeira vista, nos dilemas e dores que o outro possa estar experienciando, mascaradas justamente por essa ‘oferta’ de experiências boas que chega até nós, e nos deixa inebriados; a socialização humana, pensando a forma pela qual nós crescemos e nos socializamos, seja no ambiente familiar ou social, e de que como as experiências positivas e negativas desses ambientes forma a nossa percepção de realidade e o nosso comportamento; e a ressignificação, que diz respeito à experiências que nos ensinam coisas novas, novas percepções, novas lições, dentro de ressignificação de um trauma, de um evento negativo, em direção à uma vida mais autônoma e consciente.


Para quem assistir o filme ou ler a íntegra do texto da Niven, irá acompanhar essas questões e perceber como é difícil se colocar no lugar do outro, quando nós não reparamos no outro. Como é difícil estar em um lugar, onde você é perseguido, estereotipado, julgado. Como é difícil renunciar um pouco de nós mesmos em prol do outro, de acolhê-lo, ajudá-lo, e apoiá-lo num processo gradativo de transformação e cura. Como é importante buscar experiências que ressignificam o sofrimento, abrindo novas percepções mais alinhadas com o seu self, com a sua própria essência e verdade, longe das aparências contaminadas pelo julgamento alheio. E o mais importante: como estar com o outro, seja por relacionamento amoroso ou social, pode nos ensinar mais sobre nós mesmos e nos conduzir a uma vida mais feliz, sem arrependimentos, e repleta de experiências e lugares inesquecíveis. Fecho esse texto, fazendo alusão ao texto de Saramago já referido inicialmente:


“Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos, façamos tudo para não viver inteiramente como animais.”[2]


Esse trecho é muito significativo: nós precisamos estar despertos, conscientes, para buscar viver inteiramente e intensamente, fazendo uso de todas as nossas potencialidades. Os traumas são um fato da vida, são elementos imprevisíveis, mas que podem ao mesmo tempo em que trazem dor, dúvida, sofrimento, também podem trazer uma força de transformação que pode nos conduzir a uma vida mais plena, satisfatória, feliz. Violet e Finch, com seus encontros e desencontros nos deixam muitas lições, a saber: reparar no outro para além das aparências, renunciar um pouco de si para cuidar do outro, buscar experiências novas dentro de uma construção de memórias profundamente transformadoras, e uma outra muito importante: amar sem medo.


Busquem seus lugares incríveis!


FONTE:

[1] NIVEN, Jennifer. Por Lugares Incríveis. Ed. Seguinte, 2015. [2] SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. Ed. Companhia das Letras, 1995.

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
23 de abr. de 2023

Velho,esse filme é muito bom! Confesso que não lembrava do cerne da história mais,porém,casa bem com seu propósito no texto,de avaliar nossos dramas pessoais num convívio com outros e desenvolvermos nossos potenciais de maneira mais satisfatória

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