Neste artigo, abordarei uma experiência marcante e as reflexões que surgiram após ouvir duas temporadas do podcast "Projeto Humanos", criado por Ivan Mizanzuk. O podcast adota o formato de storytelling e se dedica a explorar casos de crime real, tendo em duas temporadas específicas intituladas "O Caso Evandro" e "Altamira". Ao compartilhar minhas reflexões, levarei em consideração minha formação e perspectiva de mundo, que estão em constante desenvolvimento por meio de leituras e experiências.
Antes de tudo, é importante ressaltar que este artigo não se concentra nos detalhes dos casos em si, mas nas reflexões que emergiram a partir desses podcasts. Além disso, buscarei estimular a reflexão, confrontando algumas crenças em relação à justiça e o modo como é operacionalizada no Brasil. Meu objetivo não é impor minhas opiniões, mas sim despertar a reflexão nos leitores, abalando suas certezas e levando-os a pensar criticamente, por isso, utilizarei de algumas generalizações para expor meu argumento.
Os casos abordados nessas duas temporadas são terríveis, envolvendo sequestro, assassinato e mutilação de crianças no Paraná e no Pará. A narrativa dos podcasts revela que as pessoas que foram presas como responsáveis por esses crimes podem não ser as verdadeiras culpadas, o que torna a situação ainda mais trágica. Essa possibilidade é amplamente compartilhada por aqueles que ouviram os podcasts. Recomendo enfaticamente a audição desses episódios, mas ressalto que eles abordam temas pesados e podem não ser adequados para pessoas sensíveis. Para aqueles que preferem uma abordagem mais resumida, há também um documentário disponível na Globoplay sobre o caso Evandro, e talvez seja lançado um outro documentário para a temporada de Altamira nos próximos meses.
Em suma, esses mais de 70 episódios de podcasts me fizeram refletir sobre problemas na justiça brasileira e na justiça contemporânea como um todo. Muitas vezes, temos a percepção de que a justiça é uma entidade certeira, na qual a pessoa presa é realmente a culpada pelo crime e os casos são resolvidos de maneira tranquila. Embora essa seja uma visão ainda compartilhada por boa parte da sociedade, especialmente entre aqueles que vivenciaram os eventos nas cidades afetadas, é importante questioná-la. A crença na justiça pode ser perigosa, pois percebemos que nem sempre se trata de uma resposta justa ou da melhor investigação possível. Frequentemente, o objetivo é acalmar a população, evitar revoltas e impedir que o sentimento de indignação se torne algo maior e prejudicial para a cidade e o “status quo".
Em momentos de tragédia como esses, os governantes locais e os representantes do sistema de justiça são cobrados e desejam oferecer uma resposta rápida para a situação. No entanto, nessa corrida para solucionar o caso, muitas decisões podem ser tomadas de forma errônea, resultando em respostas que podem apenas acalmar momentaneamente a população, sem necessariamente serem corretas. Essa é uma constatação difícil, mas evidente ao acompanhar esses casos.
Outro ponto que merece destaque é o papel do sistema de justiça na perpetuação de desigualdades sociais e injustiças. Ao longo dos episódios, é possível observar como questões como classe social, corrupção e falta de recursos impactam diretamente a forma como os casos são investigados e julgados.
Os episódios do podcast revelam situações em que as evidências são manipuladas, testemunhas são coagidas e investigações são conduzidas de forma negligente. Isso levanta questões sobre o quanto os julgamentos podem ser falhos
Além disso, essas narrativas também expõem o papel da mídia na construção de narrativas sensacionalistas e na influência sobre a opinião pública. A pressão da mídia por resultados rápidos e espetaculares muitas vezes leva à criação de bodes expiatórios e à negligência de investigações mais aprofundadas. Isso reforça a importância do contraponto na mídia e de uma educação para as mídias no Brasil, para que o sensacionalismo seja visto como mais criticidade pela população.
Essas reflexões nos fazem repensar nossas próprias crenças e certezas em relação à justiça. É essencial reconhecer que erros podem ser cometidos, e que a justiça nem sempre é alcançada da maneira adequada. Devemos questionar os sistemas estabelecidos e buscar formas de aprimorar a forma como a justiça é administrada, para evitar injustiças desmedidas, como pessoas inocentes sendo presas, dentre outros absurdos que encontramos no Brasil.
O sistema de justiça pode ser marcado por uma tendência de resistência em admitir erros e assumir responsabilidades por decisões equivocadas. Quando ocorrem falhas ou injustiças, é importante que o Estado seja capaz de reconhecê-las e corrigi-las, buscando reparação para as vítimas e evitando a repetição de erros. Mas não é isso que parece acontecer.
Inclusive, outro ponto relevante é o corporativismo, que pode estar presente no sistema de justiça. Isso ocorre quando há uma proteção mútua entre os membros de uma mesma instituição, dificultando a responsabilização e a punição de atos indevidos. Esse fenômeno pode criar obstáculos na promoção da transparência, imparcialidade e accountability no sistema de justiça.
Para lidar com tudo isso, nesse contexto, acredito que as ciências sociais, particularmente a antropologia, desempenham um papel crucial ao contribuir para a compreensão das dinâmicas envolvidas. É importante reconhecer que não existe uma racionalidade absoluta de 100% nesse processo. E Aqui estou dirigindo-me às pessoas que acreditam que tal racionalidade é possível, quando na realidade existem questões políticas, sociais e pragmáticas que influenciam as decisões. A antropologia, entre outras disciplinas, pode ser uma das melhores ciências para explicar como diferentes fatores estão interligados nesses processos, pois é necessário questionar a ideia de que as operações jurídicas são estritamente técnicas, pois muitas vezes são permeadas por outros elementos.
Portanto, ao ouvir os episódios de "Projeto Humanos" sobre o caso Evandro e Altamira, somos confrontados com a realidade dura e muitas vezes injusta do sistema de justiça brasileiro. Quando o Estado comete erros, ele não adota uma postura de desculpas e reconciliação, mas sim busca transformar esses erros em acertos. Em vez de reconhecer a falibilidade e buscar formas de reparação, observamos que o Estado direciona seus esforços para negar o erro e convencer a sociedade de que este não ocorreu.
Essa estratégia de negação do erro revela uma dinâmica complexa de poder e legitimação por parte do Estado. Ao invés de adotar uma abordagem reflexiva e autocrítica, o aparato estatal busca proteger sua imagem e legitimidade, recorrendo a mecanismos que visam minimizar ou distorcer a responsabilidade pelos equívocos cometidos.
Foi o que aconteceu, ao se deparar com as descobertas do podcast, que incluem fitas que comprovam confissões obtidas sob tortura, o Ministério Público optou por descreditar tais evidências.
Essa atitude de negação e tentativa de convencimento reflete um aspecto importante das relações de poder entre o Estado e a sociedade. Ao invés de estabelecer um diálogo aberto e transparente, o Estado utiliza recursos retóricos e institucionais para afirmar sua autoridade e minimizar qualquer questionamento sobre sua conduta. Nesse processo, aspectos políticos e ideológicos desempenham um papel relevante, influenciando a construção de narrativas que buscam justificar a ação estatal e manter sua posição de poder.
Referência da imagem: https://static.diario24horas.com.br/images/articles/2022/3/25/358-a-nova-temporada-sera-lancada-pelo-globoplay.jpg
Laudos e perícias antropológicas são muito utilizadas pelo ministério público,inclusive cresce a participação de antropólogos naquilo que é chamado de Antropologia Forense,quando disputas de território entre latifundiários e povos tradicionais ganham corpo,casos vem chegando ao STF com maior celeridade.