Depois de um mergulho em águas frias e idealistas, muitos lá fora acreditam que algoritmos apenas distorcem a cabeça de pessoas passivas, como se fossem uma espécie de carimbo impresso numa mente estilo tábula rasa. Ou seja, indivíduos seriam simples massas de manobra, nada mais do que argilas de carne e osso nas mãos de inimigos externos e traiçoeiros. Sem nenhum grau de agência, as massas apenas seguem o fluxo determinado por forças desconhecidas, grandes e invisíveis correntes nos bastidores da realidade, como se fossem zumbis, ou pior, gado. Por mais divertido que seja essa linha de raciocínio, além de extremamente popular em corredores de humanas, assim como um ótimo tempero na panela do meu EGO, as coisas são complicadas... muito mais complicadas. Da mesma forma que a ideologia não é um mero discurso externo enfiado na cabeça das pessoas, mas um produto de uma base material bem específica, os algoritmos seguem os mesmos passos, no mesmo ritmo.
Em um mergulho mais metodológico, numa tentativa razoável de encher minhas palavras com um pouco de concreto, o que em termos acadêmicos chamam de “legitimidade”, as premissas e argumentos nesse texto foram todos extraídos da minha pesquisa de pós-doutorado sobre grupos de extrema direita em plataformas digitais na Universidade Federal de São Paulo, com um destaque aqui ao bolsonarismo.
Não sei se você já percebeu, mas nas democracias liberais contemporâneas uma pergunta surgiu nos últimos anos, principalmente depois da chegada de Donald Trump em 2016, quase como um tipo de reação química rápida e poderosa: “Por que pessoas compartilham Fake News?” Apesar das milhares de mensagens circulando por aí, duas categorias de resposta se materializam no fim do corredor. Alternativa A: indivíduos compartilham Fake News porque são burros, incapazes de compreender a verdade e o mundo ao redor, talvez por conta de alguma distorção ou carência cognitiva. Alternativa B: porque são maquiavélicas, prosperando no caos e no desespero, nada mais do que criaturas sádicas e sem alma, verdadeiros monstros disfarçados de gente. Eu sei o quanto essas duas opções são divertidas, mas gostaria de sugerir um outro caminho, uma Alternativa C: as Fakes News reforçam padrões cognitivos pré-estabelecidos dentro de um mundo frágil e relativizante.
Quando mergulhamos nas páginas de grupos mais intensos do bolsonarismo, por exemplo, é possível perceber três detalhes logo nos primeiros minutos percorrendo seus feeds de notícia: 1) 80% a 90% das postagens são legítimas, verdadeiras, embora convenientes, já que destacam apenas traços positivos sobre Bolsonaro ou deslizes de algum esquerdista aleatório em alguma parte do nosso país. 2) as poucas Fakes News nesse meio não atravessam nenhuma fiscalização interna, porque reforçam um certo sistema compreensivo presente no subsolo do grupo. Ou seja, as notícias falsas entram no meio de uma esteira de verdades (convenientes), se confundindo com essas informações. 3) Embora sejam poucas (5% ou 10%), elas são amplificadas pelos próprios algoritmos, tornando cada uma delas uma arma perigosa que se espalha igual a fogo em uma vegetação seca. Em geral, como seus conteúdos são inflamatórios, agressivos, bombásticos, e como plataformas digitais prosperam em meio a um oceano de ódio e oposição, as Fake News viralizam com uma velocidade impressionante.
Resumindo... notícias falsas não são apenas notícias falsas, mas “notícias pragmáticas” que organizam um certo espaço de jogo, seja ele político ou até mesmo pessoal, íntimo. Uma simples Fake News aleatória (como, por exemplo, “aranhas são mamíferos”) não produz nenhum impacto no mundo das redes, muito menos na vida de pessoas concretas. Ou seja, “aranhas são mamíferos” é uma proposição com um baixo “teor pragmático”, por mais falsa que ela seja. Por isso, talvez, Fake News não são simples notícias falsas, mas um tipo muito específico de falsidade, com um apelo bem contemporâneo. Em termos filosóficos, proposições podem ser epistemicamente falsas, podem até ser eticamente contraditórias ou condenáveis, mas esteticamente funcionais, o que chamei aqui de pragmáticas. As Fake News se conectam com meu campo de experiência e com uma série de informações nos meus bastidores.
Agora vamos sair um pouco da grama do vizinho, direcionando nossos olhos aqui, no nosso próximo território, nesse chão que sustenta o peso do meu corpo. Imagine alguém de esquerda em suas redes sociais, como o Facebook, Twitter, Tik Tok ou Instagram, vamos ver de perto como seu feed de notícias funciona. Pergunta básica a você, meu leitor aleatório favorito: Toda informação encontrada por ele atravessa uma série cuidadosa de investigações? Números, datas, nomes e referências são checados em uma esteira longa de filtros metodológicos? Claro que não, porque não convém. Mas agora imagine esse indivíduo diante da seguinte notícia: “Lula é flagrado chutando uma criança numa rua famosa do Rio de Janeiro”. Agora sim é o momento do teste, da checagem, porque essa informação entra em dissonância com sua estrutura epistêmica, com o mundo construído por suas próprias experiências, assim como reforçada pelos algoritmos. Essa dissonância cognitiva em meu tecido de realidade, diria Festinger, produz uma espécie de demanda por uma resposta imediata, quase como um mecanismo de defesa ou um instinto de autopreservação. Nada aqui tem a ver com inteligência, como lembra Jonathan Haidt, mas com conveniência. Isso significa que o critério não é epistêmico (falta ou excesso de conhecimento), mas estético, envolvendo a forma como certas informações tocam em meu corpo e estruturam quem eu sou. Não só pessoas podem engolir doses de Fake News apesar de suas inteligências, como podem fazer isso justamente por causa delas, criando em suas cabeças sistemas compreensivos sólidos, inquestionáveis, “autolimpantes”. Em outras palavras, quanto mais inteligente uma pessoa, mais fácil é a justificativa em torno das falhas em seu tecido de realidade, mantendo tudo como sempre foi em um ritmo conservador curioso.
Sem dúvida, as milhares de informações atravessadas no feed de alguém (seja ele de direita ou de esquerda), ao longo de anos e anos de intensa exposição, podem ser 99% verdadeiras, no sentido mesmo de fatos reais extraídos da superfície do mundo. Embora isso seja possível, ainda assim essas verdades formam um arranjo aconchegante de informações (notícias agradáveis sobre meus aliados e notícias horríveis sobre meus adversários), impedindo a identificação de uma possível Fake News que pode (não necessariamente vai) aparecer.
Por mais estranho que pareça, Fake News são pedaços informacionais penetras em uma esteira pré-definida (e conveniente) de verdades. O falso é apenas uma sombra do verdadeiro e não uma face autônoma que o contrapõe
Na prática, estamos falando aqui de um padrão de comportamento comum dos humanos, de todos os homo sapiens, incluindo EU E VOSSA SENHORIA. Você não consegue ver, mas na minha cabeça agora eu tenho um modelo quase computacional, o famoso “viés de confirmação”, uma tendência a notícias aconchegantes e uma recusa a informações contraditórias. Como qualquer fenomenólogo explicaria em detalhes, pedaços de realidade que reforçam meu corpo tendem a ser reproduzidos como partes do meu “estoque de conhecimento”, enquanto outros pedaços ácidos e estranhos são jogados debaixo do tapete ou simplesmente ignorados. Os algoritmos prosperam nesse terreno do viés de confirmação, parasitando uma estrutura mental já disponível em minha cabeça, todos acolhidos em um mundo relativizante, precário, instável. Indivíduos acolhem Fake News porque elas fazem parte de um arranjo epistêmico bem estruturado, ironicamente produzido por fatos, verdades e experiências.
Ou seja, as Fake News não se opõem ao verdadeiro, mas são amparadas por ele, trazidas em seu interior, numa espécie de contrabando estranho.
Em outras palavras, pessoas compartilham Fake News não por serem idiotas ou zumbis manipuláveis, mas porque essas informações reforçam quem elas são e a bagagem de experiências nos bastidores dos seus corpos. Da mesma forma, ideologias funcionam nesse mesmo ritmo. Exemplo: quando pensamos em evangélicos reacionários, nossa leitura das circunstâncias é bem abstrata, na fronteira do idealismo: “eles são homens e mulheres ingênuos, contaminados por um discurso externo de um pastor ou de um conjunto de instituições verticais”. Mas, quando olhamos com calma, a coisa é mais complexa do que isso. Igrejas evangélicas, principalmente em regiões vulneráveis, oferecem um suporte material e psicológico incrível, além de um senso de propósito e comunidade. As ideologias reacionárias se apoderam dos indivíduos não porque eles são idiotas manipuláveis, mas porque reforçam um certo tipo de viés de confirmação, criando uma sintonia com suas trajetórias concretas. Ou seja, a matriz ideológica, da mesma forma que os algoritmos, tem uma forte base material, ou melhor, experiencial. Elas se tornam sintomas de corpos lançados no mundo, corpos que já vivem, choram, sofrem, odeiam, riem antes mesmo de qualquer contato com o discurso ideológico.
Os indivíduos não são tábulas rasas, muito menos criaturas passivas aguardando o direcionamento de alguém ou alguma criatura verticalizada. Ao olhar com calma os contornos do fenômeno, é possível perceber que a ideologia não é a fala do pastor, muito menos as propagandas na TV, mas a palavra de conforto diante de uma perda, o conselho no culto de domingo, o bate-papo descontraído no encontro de casais, o corte de cabelo gratuito na quinta-feira na garagem da Igreja, o “baba” comunitário na sexta à noite. Na prática, estruturas ideológicas não usam indivíduos, mas são usadas por eles. E nesse nível de conveniência, de enraizamento na vida concreta de homens e mulheres, essas estruturas são reproduzidas e ganham força, muitas vezes de forma perigosa, como os grupos reacionários. Por isso discursos de esquerda e direita se espalham muito fácil, não porque pessoas são estúpidas (gado), mas por causa de palavras conectadas com experiências legítimas, de carne e osso. Arranjos ideológicos, da mesma forma que algoritmos, não são elementos mentais, mas corporais, mergulhados em um rio materialista de águas turbulentas.
Algoritmos e pacotes ideológicos funcionam seguindo a mesma base do viés de confirmação, no mesmo ritmo de uma pura materialidade. O verdadeiro perigo de plataformas como Twitter, Instagram, Tik Tok e Facebook nunca foram as fake News, já que são apenas sintomas e não causas. A raiz venosa do problema é aquele próprio viés em circuitos algoritmizados, mesmo quando lida com fatos, mesmo quando reproduz informações verdadeiras. As Fake News são apenas criaturas penetras em bolhas algorítmicas que ganham mais e mais força em um mundo capitalista desenhado em torno da minha conveniência. Embora os efeitos das Fake News sejam muito mais devastadores em grupos reacionários, colocando a própria democracia em risco, ninguém permanece a salvo dos seus tentáculos, ao menos enquanto as circunstâncias continuarem tão algoritmizadas. Mesmo pessoas “boas”, “honestas”, “doutores”, “sábias”, compartilham Fake News, porque não tem a ver com caráter ou inteligência, não é um problema ético ou epistêmico, mas estético, envolvendo aqui a forma como corpos afetam e são afetados pelo mundo. A existência de um regime político líquido (democracia liberal) onde instituições são objetos de críticas constantes, em uma abertura infinita de narrativas privadas, acompanhado de um “viés de confirmação” como estrutura mental inevitável, além de algoritmos que apenas reforçam essa mesma tendência, criam um espaço perigoso, um tipo de cenário jamais visto na história humana até agora.
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