Segundo Descartes, lá por entre as páginas de suas “Meditações Cartesianas”, o humano é apresentado como uma criatura especial, diferente de tudo nesse planeta. Somos os únicos capazes de pensar, enquanto máquinas, ao contrário, estariam condenadas a seguir um conjunto predefinido de funções, sendo apenas pedaços de matéria extensa vagando por um mundo bastante newtoniano. Já Rousseau, em seu “ensaio sobre a origem e os fundamentos das desigualdades entre os homens”, sugere a perfectibilidade como uma característica da nossa espécie, algo que nos definiria enquanto seres criativos e flexíveis. Durante muitos séculos o nosso papel no universo era meio óbvio, autoevidente, mas as coisas mudaram nos últimos tempos, lançando dúvida sobre a nossa posição privilegiada.
O ChatGPT, desenvolvido pela empresa OPENAI, tomou conta da internet, quase como um tsunami na costa de algum país, invadindo vários sites de notícia do mundo. Como sempre acontece com a chegada de uma nova tecnologia, as relações disponíveis são refeitas, muitas vezes até implodidas. Talvez você já ouviu falar do tema ou até mesmo experimentou a plataforma em algum momento, digitando alguma pergunta complexa (“Por que existe algo ao invés do nada?”), divertida (“Imagine uma conversa entre Bob Esponja e Sartre) ou estranha (“como posso fazer um bolo sem ovos, leite, manteiga, açúcar e farinha de trigo?). Sem dúvida, a existência de Chatbots não é nenhuma novidade, basta olhar ao redor. Eles fazem parte dos bastidores de muitas empresas, desde bancos até operadoras de telefonia, facilitando a comunicação com respostas automáticas. Mas o ChatGPT, por motivos que ultrapassam minhas limitações sociológicas, consegue ir além disso, até mesmo reproduzindo o padrão de interações humanas, o que a classificaria como uma IA (Inteligência Artificial).
Com a facilidade de acesso a qualquer pergunta, além da chance de produzir ensaios, artigos, slides e uma série de tarefas escolares (acadêmicas) com uma rapidez incrível, qual a postura de professores diante dessas novas tecnologias com inteligência artificial? É possível evitar que sejam usadas como só mais uma forma de trapaça, comprometendo assim o processo de aprendizagem?
Pelo menos na minha opinião, a partir da minha própria experiência em sala de aula, a resposta é bem paulofreiriana (ou deweyana, caso você seja um fã do pragmatismo)... é preciso transformar o espaço pedagógico em algo significativo, relevante, atraente, caso contrário as pessoas sempre buscam um atalho confortável. Por exemplo, quando os meus alunos conversam entre si, sobre seus assuntos preferidos, eles pesquisam no ChatGPT as respostas mais eficazes? NÃO!!! Quando querem enviar um pedido de desculpas a um namorado ou namorada depois de uma briga, eles usam o ChatGPT? NÃO!!!!. Quando jogam um jogo online com os amigos, depois de um dia cansativo na escola ou na faculdade, eles terceirizam esse momento a alguma inteligência artificial? E a resposta continua sendo NÃO!!!! Mas por que? Simples... porque todas essas atividades descritas acima, além de milhares de outras, são significativas, fazem parte de suas vidas, de suas identidades, e não simplesmente um peso ou “trabalho”.
Sem dúvida, as tecnologias de IA podem se converter em obstáculos no ensino, verdadeiras dores de cabeça no caminho de qualquer professor, mas apenas se o modelo de aprendizagem continuar o mesmo, congelado, chato. Se o aluno continua enxergando o ensino como só um custo, como um simples meio em busca de algo além, ou até mesmo como um pedaço de atividade inútil, eles vão continuar na busca por respostas rápidas, baratas e eficazes. Sempre foi assim... diante de algo que me incomoda, diante de uma circunstância embaraçosa ou cansativa, o nosso corpo vai simplesmente fugir, reduzindo ao máximo o tempo e a intensidade daquela experiência frustrante. Se a aula é um custo, é algo insuportável, sem nada de significativo, meu aluno, por razões biológicas, vai desenvolver estratégias de fuga, mecanismos de defesa.
Seguindo um pouco esse raciocínio, eu jamais escreveria um ensaio no Soteroprosa, nessa plataforma onde você me acompanha agora, usando uma IA. E não porque eu acredito ser mais inteligente do que a sabedoria dos algoritmos, mas porque a escrita é significativa em minha vida, faz parte de quem eu sou, carrega um pouco de mim, além de algo prazeroso. Posso não escrever um ensaio tão rápido ou tão complexo quanto o ChatGPT, mas nem tudo é eficácia, nem tudo segue uma lógica utilitária. Quando escrevo um ensaio, eu não quero terminar tudo o mais rápido possível, já que aos meus olhos aquilo não é um custo, não é um peso. Da mesma forma quando encontro meus amigos, não quero apressar aquele momento... aquilo tem um sentido em si mesmo. Meu ensaio pode ser 50x mais lento, 30x mais superficial do que um texto produzido por uma IA, mas ainda assim é MEU ensaio, algo significativo, divertido, importante.
As tecnologias podem afetar a eficácia daquilo que fazemos (redução de custos, aumento de velocidade, etc), mas não consegue interferir na esfera do sentido. Em outras palavras, eu peço um texto eficaz e rápido a uma IA, mas não um texto significativo, não um texto que se conecte comigo. É por isso que nas partes mais importantes das nossas vidas as tecnologias apenas complementam os momentos, mas nunca substituem as experiências. Se eu viajo com minha esposa até uma cidade específica, depois de meses planejando, eu uso as fotos como um complemento, jamais como um substituto. Ninguém diria, por exemplo: “vamos desistir da viagem, porque eu acabei de comprar óculos de realidade virtual” ou “Podemos assistir um vídeo no youtube sobre a cidade” ou “podemos gerar imagens realistas através de uma IA”. Nada substitui o momento, o vivido. Da mesma forma que meus alunos preferem jogar um jogo online, como o LOL, ao invés de simplesmente assistir uma IA comandando os personagens. Eles querem fazer parte da história, eles querem compartilhar o momento, porque aquilo faz sentido.
Claro que essa transformação da experiência de ensino em algo significativo não é apenas individual, por parte do professor. É preciso de uma rede enorme nos bastidores, um conjunto imenso de agentes humanos e não-humanos garantindo a significância de um certo momento. É preciso que os alunos entendam o quanto a escola (universidade) não é apenas um meio na busca por alguma meta, mas também um fim em si mesmo, um espaço significativo. Caso isso não aconteça, as novas tecnologias deixam de ser aliadas e se apresentam como inimigos mortais do professor.
Sem dúvida, as IAs acessam fatos mais rápidos e mais elaborados do que qualquer aluno ou professor, produzindo ensaios e slides em segundos, de um jeito até imperceptível aos olhos externos, mas é incapaz de tornar tudo isso interessante. Pelo menos, por enquanto, nós professores estamos a salvo. Pelo menos, por enquanto, temos algo que máquinas ainda não são capazes de oferecer, ou seja, um mundo além do puro utilitarismo, um mundo de sentido.
Referências da Imagem:
https://getbots.com.br/blog/chatgpt-guia-completo/
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