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POR UMA PSICOLOGIA DO DIVERSO





Nenhuma tomada de consciência foi tão necessária nos últimos anos como atentar para a importância de nos reinventar. O terror da pandemia nos infligiu muitas dores, tanto pela morte de pessoas quanto pela ignorância arrogante da negação.

 

Episódios catastróficos ao longo da história deixaram feridas que, talvez, não serão totalmente saradas e, vez ou outra, atinarão dores que nos lembrarão da nossa frágil existência. Mas o certo é que nossa inteligência orgânica nos mobiliza para a vida e, por isso, elaboramos e ajustamos outros arranjos.

 

Novas maneiras de fazer e outros modos de encontros são exemplos de planos para continuarmos seguindo mesmo em condições adversas. A dinâmica do trabalho, por muito tempo, foi concebida como energia voltada para o externo, mas, no período pandêmico, invadiu o cenário do íntimo pelo menos para aqueles que podiam garantir a vivência do privado.

 

O trabalhar de casa não foi uma novidade para muitos profissionais, mas para tantos outros tornou-se uma moderna possibilidade, só que uma mudança de lócus demanda uma compreensão de propósitos, isto é, para que se alcance sucesso em novas formas de fazer é fundamental que se saiba o que será feito e quais são os objetivos desse fazer.

 

Para especificar essa conversa utilizarei a psicologia como exemplo por dois motivos, o primeiro, porque acredito que é mais assertivo falar a partir da minha posicionalidade profissional, ao invés de correr o risco de errar, falando sobre campos que não tenho aprofundamentos. O segundo motivo é porque o cerne da prática psicológica está na mudança, que acontece no processo de cuidado da inquietação existencial do humano, ou seja, diante da vivência do sofrimento, o ato necessário é o movimento, já que a resistência às mudanças resulta na manutenção do mal-estar.

 

O abandono do conhecido gera estresse, mas insistir na permanência de modos de funcionamento que perderam a funcionalidade também causa dor. A estagnação e o movimento são promotores de desconforto, só que a paralisação é avessa a esperança, enquanto o movimento flerta com as possibilidades.

 

Quando a urgência da pandemia nos demandou recolhimento, a psicologia clínica intensificou a sua prática remota. Não sem temer prováveis perdas de possibilidades do encontro presencial, mas as necessidades da nova realidade demandaram reinvenções de práticas. Mas será que também movimentaram conhecimentos?

 

Historicamente, as urgências da coletividade entraram na pauta da psicologia pela via da ação social a qual performava apartada dos holofotes de glamour da clínica que seguia com seu fazer centrado em assuntos quase que exclusivamente de base intrapsíquica, entendendo-se desobrigada de olhar para fora, para as inúmeras condições enfrentadas pela sociedade.

 

A psicologia passou muito tempo enclausurada no seu aconchego clínico e, enquanto ciência, esteve disponível a desejos e caprichos de uma elite entediada das suas questões mornas tão parecidas com as de seus pares, muito pouco afeita a se ocupar de assuntos concebidos por aqueles não reconhecidos como seus integrantes, muito distante e estranha à realidade vivenciada por eles.

 

A teorização psicológica que era orientada pela ideia da diferença social experenciada pela sociedade brasileira, por exemplo, normalizava a hierarquização, fundamentando suas crenças e indiferença na negação da necessidade urgente de pensar o quanto suas práticas impunham defasagens aos de fora. A discussão dessas práticas desencadeava sistemáticas ações de resistência, ou seja, o desenvolvimento de inúmeras medidas de manutenção de privilégios e oportunidades aos estabelecidos e interdições aos margeados. Da psicologia nasceram testagens e medições com o propósito de confirmar que mudanças não seriam sustentadas pela ordem natural, portanto era necessário lançar mão de formas de eliminação do diferente da constituição de humanidade.

 

Os sujeitos que compunham essa constituição indesejada eram todos aqueles destoantes em traços e condições dos seus avaliadores. Mas o que sempre foi sabido é que os esforços feitos para associar a diferença às defasagens eram movimentos para garantir a manutenção de poder em todas as formas de expressão daqueles que conceituavam o que era centro, universalidade e padrão.

 

É fato que as estratégias para a exclusão dos de fora com o propósito de proteger os de dentro passam por atualizações. Sistematicamente, formas, métodos e discursos são renovados para que o estado de privilégio permaneça sem que posicionamentos contrários possam reverter o projeto que se tornou constituinte da cultura brasileira, em que conceitos como, meritocracia, por exemplo, são desenvolvidos para destituir pessoas margeadas do direito de existir e são utilizados como representações de harmonia e paz. Mas paz para quem?

 

Como resultado dos recorrentes tensionamentos para que as ciências do cuidado, especialmente a psicologia, tratem o seu sujeito de interesse, o ser humano, compreendendo-o interseccionado por múltiplos marcadores, têm-se observado iniciativas que propõem terapêuticas de caráter progressista decididas a acolher e cuidar de sofrimento de mulheres e homens adoecidos. Contudo, tal qual figurinhas repetidas, profissionais de psicologia têm repetido modos de operação assentados em uma máxima que os aloca no papel de salvadores, de sujeitos que sabem, logo podem resolver os problemas daqueles que sofrem.

 

O que se nota é a psicologia dando continuidade à patologização de posicionalidades divergentes, enquanto confirma a normalidade e saúde da padronização. O que se vê são mulheres e homens tomando para si a capa de heróis, reivindicando mais uma vez o protagonismo e o poder de nomear as dores do outro, lido como incapaz e despotencializado para gerir suas emoções e tal como um infante necessitado de tutela. Nada de novo no front!

 

Uma revisão da psicologia requer a compreensão do que confere o seu próprio fazer que é a promoção da saúde e não a caça de doenças. Toda existência em sofrimento demanda ações que possam viabilizar a retomada da fluidez. Entendendo assim, que a saúde não é a ausência de doença, mas a vivência de condições que possam oferecer a uma pessoa o direito à autonomia.

 

O trabalho de profissionais da psicologia decididos a pensar a pessoa como um ser despontencializado, submetendo-a a interpretações científicas, a aconselhamentos e orientações, permanece orientado pela compreensão de que seus demandantes são sujeitos passivos diante do saber e agir da psicologia.

 

Um fazer clínico que acolhe o diverso representa um investimento psicológico que visa legitimar discursos e existências no mundo que são potencialidades as quais precisam ser reconhecidas em sociedade. Todas as pessoas são agentes diretos da constituição e desenvolvimento da sociedade, mas pela estrutura excludente que tem orientado historicamente as relações em âmbitos nacional e internacional, vivenciam estados de defasagens que têm perdurado.

 

É justamente por causa desse longo tempo que mulheres e homens têm enfrentado desvantagens psicossociais e, por sua urgência, a psicologia precisa assumir, sem dissimulações, a sua responsabilidade em participar do processo de expansão indistintamente de todos os sujeitos sociais.


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