O filme “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” (2022) dos diretores e roteiristas Daniel Kwan e Daniel Scheinert recebeu uma ótima recepção crítica, surpreendendo espectadores. O Oscar de 2023 reuniu 11 indicações para a produção cinematográfica, entre elas a de melhor filme, melhor montagem e melhor atriz, essa última para Michelle Yeoh, natural da Malásia, como a protagonista Evelyn. Os atores Ke Huy Quan, vietnamita que interpreta o pai Waymond Wang, foi indicado como melhor ator coadjuvante e a atriz Stephanie Ann Hsu no papel de Joy Wang, também teve sua primeira indicação como melhor atriz coadjuvante.
Os três juntos compõem o núcleo familiar da trama polissêmica dos imigrantes e descendentes chineses que tentam sobreviver e pagar suas contas nos E.U.A, quando são surpreendidos por seus alter egos para salvar o multiverso, a comunicação principal dos alter egos ( em especial o do marido Waymond) é com a protagonista Evelyn, incumbida da missão de salvar os mundos de sua filha Joy. A produção cinematográfica também conta com a participação da atriz conhecida pela franquia Halloween, Jamie Lee Curtis, também indicada como melhor atriz coadjuvante por “Everything Everywhere All at Once,” na tradução “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”.
O filme fascina por jogar entre os espelhos da linha temporal da vida, na qual, fatos diversos e sem sentido para um expectador comum ocorrem no mesmo lugar e se encontram de forma inusitada no mesmo tempo, modificando a linha temporal das histórias entrelaçadas. Para os fãs da Marvel, o filme se aproximaria dos multiversos de "Doutor Estranho", mas nesse caso, a protagonista não serie apenas uma espectadora, todavia, autônoma de si ao mesmo tempo em todas as dimensões. Numa espécie de consciência onisciente. Já para fãs do seriado de animação "Rick e Morty", a teoria dos multiversos também não soaria bizarra, uma vez que existem várias personas de um mesmo personagem que habitam dimensões diferentes.
A trama se utiliza dessa história dos multiversos para explorar a metáfora das relações familiares, a filha, Joy, mantem uma relação lésbica e há o enfrentamento da mãe em contar para o avó, um imigrante chinês que segue um modo de pensamento tradicional. Evelyn também se responsabiliza pelas contas da lavanderia herdada por seu marido Waymond Wang. Ao mesmo tempo em que cuida da casa também cuida do negócio familiar, a protagonista representa a maioria das mulheres contemporâneas que se incubem com multitarefas, além de representar um corpo imigrante, não branco e de classe média, inferindo várias identidades possíveis.
O enredo, entre muitas vertentes, pode ser interpretado como uma alegoria de amor entre Evelyn e sua família, em especial com Joy, a relação que concentra com sua filha é a de um relacionamento amoroso e medroso, uma vez que percebe que Joy se distância dela, pois essa sustenta as escolhas diante da própria vida, enfrentando os medos, diferentemente da mãe.
Um dos dilemas da protagonista, diante do tédio é o sonho do que ela poderia ter sido, ou ter feito, sendo essa a jornada que atravessa a trama, os alter egos como a possibilidade do vir a ser. Evelyn em sua jornada de autodescoberta e de dominar todas as vidas dos multiversos ( ou as vidas que não teve naquele universo) consegue se aprimorar em suas habilidades e descobrir que tudo que sua filha queria era uma abertura para uma conversa que a mãe tinha medo de enfrentar, até passar por essa metamorfose e encontrar a resposta no dialogo e no amor.
O filme não só fascina por suas cenas surrealistas, entre elas um recorte em que mãe e filha estariam sempre juntas, mesmo se fossem feitas de pedra. Na cena, as duas pedras – Evelyn e Joy- tentariam se comunicar e se proteger em um ambiente inóspito. Essa é uma das cenas mais fascinantes, porque demostra o amor em seu estado puro, aquele que pode estar presente em qualquer dimensão e forma, em qualquer canto do Universo. E talvez isso esteja acontecendo aqui e agora, é o que sugere o filme. O tempo aparece como um devir contínuo. Ou seja, ele sempre transita entre passado, presente e futuro, sem uma linha estática, porém o amor entre as duas consegue atravessar as barreiras temporais e universais.
A narrativa cinematográfica esconde em suas entre linhas as camadas do tempo e do espaço, brincando com teorias filosóficas como a metáfora da “Caverna de Platão”, perpassando pela teoria do buraco de minhocas, de Sthepen Hawking, até a ideia de ego Freudiano, refletida na relação de amor e medo entre mãe e filha. A montagem também percorre essa concepção profunda e dual, consiste em uma rapsódia de referencias cinematográficas, que une cenas como a do macaco descobrindo a arma de osso em “2001: Uma Odisseia no espaço”, e referencias como “De volta para o futuro” e “ Kill Bill”. As cenas da produção cinematográfica é um convite para adentrar todos os tempos e espaços que consomem a tela de cinema.
“Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” expõe uma metáfora não só da temporalidade, a qual desafia os sentidos, mas instiga um pensamento do vir a ser Kantiano. Um futuro que sempre está na eminência de chegar e as preocupações e ansiedades que o tempo reserva a simples humanidade. Esse também é um filme sobre amor e família, honrando uma narrativa que brinda ao amar e ao ser amado. Quando diante da guerra travada contra Joy, a filha, Evelyn, a mãe e protagonista, descobre que o jeito de eliminar o ódio é se opondo contra ele dando a outra face. Só o amor salvará o mundo.
A produção audiovisual se debruça numa estrutura de espiral, as histórias das personagens se complexificam. Quanto mais histórias o roteiro adentra, fragmenta enredos que ficam a cargo do espectador fabular: de onde vem, para onde vão? Essa é uma pergunta intempestiva. O espectador treme diante do tempo confuso e do caos, do estranhamento, não se sabe de onde vem e para onde se vai nessa narrativa interconectada. Está tudo acontecendo o tempo inteiro no mesmo lugar que até se perde o referencial de tempo, seja na fragmentariedade da montagem ou na própria forma de organização do roteiro. A brincadeira com o tempo se torna infinita.
Isso se reflete também na própria estética que no filme remete narrativas como a dos animes, quando um olho de brinquedo é referenciado como um terceiro olho, a abertura da razão nessa Matrix de multiversos, ou uma rosquinha que ganha um significado de concatenar todos os mundos possíveis. A estética é um convite para a imaginação, refletido na construção da montagem, que mistura os multiversos desde a figura de duas pedras em um ambiente inóspito para representar os personagens, até desenhos animados e bonecos presos numa árvore, assumindo a persona da mãe e da filha.
Apesar das personagens contarem a história, quem realmente se faz presente como elemento principal da trama e o que estimula as mudanças de emoções e fatos é o próprio tempo que guia a narrativa. Esse aparece como uma metáfora e dita o ritmo da obra, proporcionando outras maneiras de compreender essa abstração que é o conceito do que é o tempo diante do espaço. O filme emociona em sua complexidade, prendendo o espectador em uma narrativa entrecortada, fugaz, surpreendente e divertida.
As imagens fílmicas também se chocam por condessarem vários símbolos em pequenos fragmentos de cena, como o terceiro olho. A narrativa transita simultaneamente entre o simples e o complexo. Dialoga com as ideias de bem e de mal, amor e medo, vida e morte, Yin e Yang. Interessa, pois, transcende entre os temas universais da humanidade, como as grandes narrativas, de acordo com Júlio Cortazar, em “Valise de Cronópio”. O teórico e contista sul-americano tece ideias sobre as construções da narrativa e sua estrutura, o que interessa para distinguir a originalidade da obra. Essa trama com certeza transborda no quesito ineditismo, a imprevisibilidade como um elemento indispensável assim como os temas que são comuns a humanidade.
“Everything Everywhere All at Once” ou “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo” pode ser interpretado como uma metáfora do que é ser humano, mas também como um aqui e agora que só o cinema consegue capturar em sua lente e em seu tempo e espaço imprevisível, afinal essa é uma arte que reúne esses dois lugares : o do local e o da duração. “Tudo o tempo todo no mesmo lugar” é um sample, uma colagem de gêneros e de imagens que percorrem em uma cacofonia e epifania de imagens e sons, reunindo milhares de ideias em um todo, numa espécie de buraco negro de rosquinha que suga o mundo.
Imagem de capa: cena do filme “Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo”, retirado de <https://cloud.estacaonerd.com/wp-content/uploads/2022/06/06153652/TUDO-EM-TODO-O-LUGAR-AO-MESMO-TEMPO_Diamond-Films_5-scaled.jpg>
belíssima crítica e análise do filme. rica na construção dos argumentos e no desenvolvimento 👏🏻👏🏻👏🏻
Bom texto,Jac,instiga a pessoa a assistir,embora precise entender um pouco de metaverso. Me pareceu que é o tipo de filme que vc fica confuso no início e depois vai tentando desvendar a