O falecido antropólogo Roberto Albergaria costumava dizer que o escritor Jorge Amado era “apenas um cara engraçado”, referindo-se à suas obras, em suas aparições na rádio Metrópole. Lembrei desse fato porque me peguei pensando o quanto ex-colegas meus de faculdade também não tinham apreço pelo Amado Jorge, enquanto lia trechos de "Navegação de Cabotagem", um dos seus últimos trabalhos. Certa vez, uma colega se referiu a ele, irritada, como “um homem cis branco”, prenuncio de uma suposta crítica ao status étnico e privilégio financeiro do famoso romancista. E assim venho percebendo que muitos pares torcem o nariz quando ele é citado. Afinal, por que o autor de “Tieta do Agreste”, “Dona Flor e seus Dois Maridos”, “Tereza Batista, Cansada de Guerra” e tantos outras histórias vertidas em filmes, séries, e novelas, não é reverenciado por acadêmicos?
Devo já adiantar que não tenho essa resposta – óbvio – mas mantenho a curiosidade. Lima Barreto, João Ubaldo Ribeiro, Raquel de Queiroz, Guimarães Rosa, parecem muito mais simpatizados por catedráticos. Mas o notório cidadão de Itabuna, nascido numa fazenda no Sul da Bahia... Há muitos jornalistas, colunistas e dramaturgos que amam suas histórias cabeludas, mas por aqui... Muitos parecem não ter nada contra, porém... Quanto ao odiar, é pura hipérbole. Não chega a tanto. Pelo menos eu acho...
Não deveria ser assim. Iniciou sua carreira aos 19 anos com o excelente “O País do Carnaval” – contendo passagens descrevendo machismo e violência doméstica; criticou o Estado Novo de Vargas na trilogia “Os Subterrâneos da Liberdade”; relatou o drama dos menores abandonados de Salvador em “Capitães de Areia”; homenageou líderes religiosos do candomblé em “Jubiabá”; no mesmo romance, deflagrou a luta da classe trabalhadora por meio de Baldo, o estivador; retratou as dificuldades dos moradores do Pelourinho em “Suor” e as explorações dos funcionários da lavoura cacaueira em “Terras do Sem Fim”. Olha quanta sociologia tem aí...
Amado foi comunista e deputado federal eleito, depois cassado após o PCB cair na clandestinidade. Era pra ser uma figura de ponta e bem representado nos diretórios estudantis, entretanto... Bem verdade que ele passou a ser mais conhecido pelas personagens lascivas que campearam pelas telas como Gabriela, e as já citadas Tieta, Dona Flor, e Tereza Batista. No entanto, suas retratações eram bem diversas. As praças do Pelourinho levam nomes de criações suas e homenageou grandes nomes de nossa terra como Irmã Dulce, Marighela, e Major Cosme de Farias (uma figura soteropolitana lendária, um rábula muito respeitado pelos juristas, mas injustamente pouco conhecido). Uma estátua dele com a esposa Zélia Gattai e seu cão de estimação virou atração turística no Rio Vermelho. Sua antiga residência, no mesmo bairro, é um local de visitas e museu de sua vida. Quantas pessoas não rodaram Salvador toda comendo água, não frequentaram os puteiros da Ladeira da Montanha, não se engraçaram com mulher comprometida por aí? É Jorge... você disse.
Apesar desse histórico, tornou-se muito amigo de Antônio Carlos Magalhães, e talvez esse seja o ponto que chamou atenção de muitos que o acham apenas um autor razoável. Também não foi um célebre combatente da ditadura militar brasileira, muito pelo contrário, como demonstrou num artigo a historiadora Carolina Fernandes Calixto, ao atribuir uma postura ambígua do escritor naqueles tempos. Quando o Banco Econômico quebrou, afirmou que tinha falido, pois sua poupança se encontrava por lá (memória pessoal). Enfim, essas últimas passagens estão longe de transformá-lo numa figura controversa, a ponto de atingir a leitura de seus livros.
Quando peguei a matéria “Formação da Sociedade Brasileira” na faculdade, o professor Gustavo Falcon não passou um texto ou livro sequer de qualquer teórico renomado, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior, ou Florestan Fernandes. Passou para nós leituras de livros como “Mar Morto”, “Jubiabá”, e “Tocaia Grande”. Falcon nos dizia que a verdadeira sociologia está “na conversa mole” de autores como Jorge Amado, descrevendo a vida de nosso povo nas belas histórias retratadas em seus romances. Parece que ele destoava bastante de seus colegas docentes.
Claro que quando me refiro aos intelectuais baianos que conheci e que não liam ou não leem Jorge, é mais ou menos 0,0000001% de todo mundo da UFBA ou que passou por ela, porém, quase 100% dos que conversei sobre isso tiveram enorme indiferença à leitura de sua obra, de acordo com esse recorte empírico mambembe que utilizei. Esse texto é mais uma breve homenagem ao autor que mais li e que completou 23 anos de falecido do que uma proposta de questionamento. E a pergunta continua: o que será que afasta Jorge Amado de tantos intelectuais?
FONTE:
Cara, gostei! Gosto dos seus textos!
Compartilho da sua inquietação, pois, acredito que esse lugar secundário de Jorge Amado precisa ser pensado. Por que? Recentemente, li uma obra publicada com cartas/fax trocados entre Jorge Amado e o Saramago. E o escritor português tinha muito respeito por ele, pela qualidade de sua literatura, o que só fez a minha inquietação aumentar. Por que ele é pouco reconhecido?