Os debates identitários fazem parte do mundo contemporâneo, definindo um tipo inédito de prática progressista, aquilo que Wright Mills chamou de Nova Esquerda, principalmente depois da queda de projetos mais universalizantes e ousados como o marxismo. Com o descentramento do conceito de poder, agora bem flexível e aberto a múltiplas interpretações, novas frentes de batalha brotam do horizonte, assim como novas narrativas, demandas e até mesmo inimigos. Se parecia óbvia a centralidade da burguesia, imaginada como uma grande força nos bastidores do mundo, controlando cada detalhe das circunstâncias, sejam elas artísticas, religiosas, políticas ou científicas, hoje, por outro lado, esse “óbvio” não é mais tão “óbvio” assim. Afinal, outras inconsciências se escondem nas sombras, como Homens, Europeus, Héteros, Cristãos, Norte-Americanos, Pessoas Cis, Pessoas Brancas, Neurotípicos, Corpos Magros, Não-deficientes, Sulistas, e uma infinita e sempre flexível esteira de vilões, tudo isso acompanhado por novas narrativas e demandas.
Sem dúvida, a chegada de novas identidades, em um fluxo de lutas eternas por reconhecimento (Honneth), representa um ganho na esfera pública, ao menos quando é avaliada a partir da democracia liberal e seus parâmetros de jogo. Apesar desse ganho, e até da necessidade imediata desse gesto, existe também um lado sombrio dos identitários, um risco que muitos não conseguem (ou não querem) perceber. O problema de fundamentar a luta política na ideia de “identidade” não é o termo em si, muito menos seu uso, mas o exagero no processo, quase sempre numa tendência essencializante, esquecendo no caminho sua dimensão pragmática. Em outras palavras, ninguém experimenta o mundo como NEGRO, MULHER, GAY, BRASILEIRO, NORDESTINO, CRISTÃO ou outras milhares de identidades semelhantes... Essas categorias são ferramentas práticas que realçam certos detalhes da experiência, detalhes que me convém em determinado momento, seja por razões políticas ou acadêmicas. Imagine, por exemplo, um filme... Quando eu fui assistir os “Banshees of Inisherin”, antes do Oscar, eu não assisti a “trilha sonora”, “a performance”, “o cenário”, “a direção”, nada disso... eu assisti O FILME, enquanto uma totalidade de recursos. Claro que depois do cinema, quando eu chego em casa, no conforto da minha poltrona, eu posso escrever um ensaio destacando alguns dos seus elementos, como “a performance”. Mas esse gesto de simplificação é sempre a posteriori, ou seja, sempre depois da experiência, envolvendo quase sempre alguma demanda específica (talvez eu precise enviar um ensaio ou fazer alguma apresentação em um congresso).
Seguindo os passos da teoria queer, e da própria Judith Butler, mas também pegando um pouco de pitadas do pragmatismo enquanto um ótimo parceiro nas ciências humanas, significantes como “M-U-L-H-E-R”, “N-E-G-R-O”, “G-A-Y” não existem enquanto simples materialidade, embora temos uma tendência nos movimentos identitários de essencializar os contornos dessas palavras, como se existisse algo místico em suas profundezas, apenas aguardando ser revelado ou libertado. Como se por trás da estrutura patriarcal existisse A VERDADEIRA MULHER, ou por trás do racismo existisse O VERDADEIRO NEGRO, ou nos bastidores do colonialismo existisse O VERDADEIRO ÍNDIO. Na verdade, não existe nada por trás, a não ser uma série complexa de negociações e aberturas ao futuro. Quando superamos as armadilhas da colonização brasileira, não descobrimos no final do processo O BRASIL LEGÍTIMO, REAL, algum tipo de essência durante muito tempo reprimida, mas sim um campo complexo de lutas, experiências e reformulações.
O movimento negro, ao menos parte dele, desliza muito nessa armadilha. Quando termos como “ancestralidade”, “negritude” ou “mãe África” vem à tona, por exemplo, uma certa aura essencializante aparece, como se “negro” não fosse apenas uma ferramenta provisória de combate ao racismo, mas algo além, um tipo de elo místico que atravessa os tempos. Essa forma de essencialismo, essa busca por um tipo de vínculo transcendente ou cósmico que se arrasta além das circunstâncias, torna a prática da esquerda identitária conservadora, ao menos aos olhos de figuras como Marx. Faz parte do conservadorismo esse recuo a um passado puro, assim como o resgate de alguma coisa nobre e reprimida nos bastidores. Essa foi, inclusive, a crítica de Marx ao socialismo utópico, entendido por ele como conservador, já que apenas acolhia o passado e fórmulas transcendentes, como se fossem alternativas confiáveis de combate ao capitalismo. Segundo Marx, a resposta não nos aguarda nas areias do tempo, perdida em algum lugar da floresta amazônica, muito menos em um algum tipo de paraíso. Em termos marxistas, é dentro do próprio fluxo de dominações que o seu oposto aparece, nesse caso, as identidades e esquemas de resistência, o que chamou de dialética.
Em outras palavras, só existe comunismo, pensado aqui como um germe de resistência, em um mundo capitalista, da mesma forma que só existe negritude em um mundo racista, ou mulher empoderada em um mundo onde o machismo impera. Por isso que Foucault, em um dos seus livros mais famosos[1], produziu uma verdadeira dor de cabeça com a seguinte frase, aqui parafraseada: “na Grécia antiga não existia homossexualidade, mas existiam homens que transavam com homens”. Isso significa que “o homossexual” enquanto uma identidade consciente de si não existia, nem mesmo como dado objetivo em algum texto jurídico. Essa forma de subjetivação, nas palavras de Foucault, ou seja, esse gesto de “se vê” como negro, como gay, como mulher, é um processo muito contemporâneo, normalmente acompanhado por uma demanda prática, no caso de lutas políticas, por exemplo.
O tom conservador de alguns identitários também afeta a qualidade da esfera pública e do próprio ambiente acadêmico. Nesse clima essencializante, como é de se esperar, debates não existem, nem mesmo o mínimo de abertura. Se as identidades são acolhidas como algo sólido, puro e autoevidente, ou até mesmo como essências apenas aguardando libertação, não existe nenhuma chance nesse cenário de debate. Até uma simples crítica perde qualquer inocência, considerada agora um ataque pessoal, um tipo de blasfêmia. Nesse sentido, a esquerda identitária tornou o espaço acadêmico e político uma atmosfera tensa, um campo praticamente religioso, em que a própria crítica é sinônimo de heresia, uma completa afronta. A dependência psicológica com os rótulos identitários, e a consequente essencialização no processo, embora seja compreensível (e previsível) em termos gerais, não deixa de ser também perigoso. Em vez de ferramentas, signficantes se tornam moradias simbólicas, espaços de segurança e conforto psicológico, criando aquilo que chamei de "dependência epistêmica" (Clique aqui e saiba mais).
Por esse e outros motivos eu defendo a necessidade de uma esquerda pós-identitária o mais rápido possível, uma esquerda que não se leve tão a sério, uma esquerda zarastustriana, capaz de rir de si mesma. Uma esquerda consciente de suas categorias políticas e acadêmicas, assim como da circunstancialidade de cada uma delas. Sem dúvida, todas são ferramentas importantes, eu diria até indispensáveis, mas nada mais do que isso. Identidades não podem ser cavernas confortáveis, condomínios fechados, muito menos terapias, mas ferramentas, nada mais do que recursos provisórios, complexos e abertos a futuras negociações.
Por isso, repito... MULHERES, NEGROS, GAYS, NORDESTINOS, CATÓLICOS, etc, não existem, ao menos enquanto substâncias vagando por aí. Lembre... ninguém experimenta o mundo em gavetas, mas como uma rede interseccional complexa, um pacote inteiro de experiências. Se eu escolho a categoria raça como destaque, isso não descreve um caroço essencializante resgatado das profundezas do meu ser, muito menos da realidade ao redor, mas um gesto específico e humilde, dentro de uma certa demanda concreta. É justamente essa consciência pragmática que deve nos acompanhar, a certeza de um mundo não mais sufocado por certas categorias de linguagem, não mais preso em cavernas identitárias. É preciso uma esquerda capaz de acolher lutas mais gerais, mais coletivas, ao invés de simples divisões internas, caóticas e narcisistas. O segredo, portanto, não é o abandono de lutas identitárias, mas a mudança de postura, uma perda de pretensão, ou seja, uma fuga do conservadorismo de esquerda.
[1] A “história da sexualidade” volume 1
Excelente texto!!!
Texto essencial! Não pode haver qualquer perspectiva de geração de debates em um contexto onde a substância torna-se concreta,deturpando complexidades e criando espaços de poder mambembes.