Diante dessa pergunta no título, a resposta parece bem simples, imediata, super automática, principalmente se a esquerda liberal é sua escolha política. Podemos dizer que “somos bondosos, mente aberta, acolhedores, fazemos nossa parte enquanto indivíduos dentro de um espaço democrático pulsante, etc”. Ou seja, a resposta disponível usa de um critério ético como forma de justificativa. Mas, apesar das aparências, e do óbvio contorno das coisas, talvez não seja tão simples assim. Quando Foucault fala da transição da idade média ao iluminismo, e as críticas que começaram a aparecer por conta das torturas medievais, um raciocínio parecido brotou do horizonte, sendo até mesmo parte do repertório de grandes nomes do século XVIII, como Kant, Voltaire e muitos outros. Segundo eles, o desprezo às torturas, além de outras práticas “desumanas”, é reflexo de uma nova sensibilidade, de uma nova era das luzes e da valorização do humano, o que indicaria uma clara evidência de um progresso moral. As pessoas se tornaram mais sensíveis, menos cruéis, deixando de lado execuções públicas e todo um entretenimento meio macabro que fazia parte de tempos mais sombrios.
Por outro lado, a resposta de Foucault, em seu clássico “Vigiar e Punir”, é uma certa desconfiança dessa retórica de progresso moral dos iluministas. Existe, na verdade, uma mudança epistêmica na forma como o conhecimento é visto, da mesma maneira que uma certa concepção de mundo aparece nos bastidores, reconfigurando tudo pelo caminho. Seguindo essa linha foucaultiana, a defesa da diversidade existe também por razões epistêmicas, principalmente pelo fato do universo ser apresentado a nós como frágil, incerto, nada mais do que discursos, interesses, ideologias, ou seja, um mundo que não é universal, essencial, místico, transcendente, muito menos óbvio. Em outras palavras, defendemos o movimento LGBTQIA+ não por razões éticas, mas pelo simples fato de que compreendemos o gênero como algo precário, incerto, flexível, e em constante fluxo, seja por conta da linguagem, em análises pós-estruturalistas, ou por causa de corpos e performances, em linhagens fenomenológicas. Por que acolhemos discursos decoloniais, de povos subalternos? Da mesma forma, o critério não é ético, mas epistêmico. Acolhemos a diversidade de povos, e toda sua bagagem de fundo, porque deixamos de acreditar em essências e universais, não acreditamos em nada sólido que governa tudo no princípio dos tempos, mas sempre em algo contingente, seja resultado da linguagem, do corpo, dos afetos, das ideologias, dos interesses, das estruturas, dos sistemas... Enfim, o mundo entra em um novo registro de saber, aquilo que Foucault chamou de “hermenêutica da suspeita”. Esse é o fundamento de toda a nossa defesa da diversidade. Um novo registro epistêmico aparece, trazendo como resposta novas posturas, teorias e conclusões.
Por que defendemos a emancipação das mulheres? Mais uma vez, não por motivos éticos, mas epistêmicos. Como não existem mais essências, naturalidades, universalidades, como também não existem transcendências, seres cósmicos, eternos, místicos, já que a única coisa lá fora são fluxos imanentes, incertos e instáveis, podemos arriscar novos arranjos. Como o mundo lá fora é experimentado como frágil, assim como todos os seus critérios organizadores, qualquer fronteira é suspeitada, qualquer critério dissecado, qualquer limite problematizado, não importa qual seja. Não existem mais xamãs, oráculos, nada de garantias, nada de previsões. Em outras palavras, só existe diversidade em um espaço de contingências, em um campo precário, incerto e até angustiante. Esse é o preço do diverso... quanto mais o outro aparece enquanto autonomia, e potencial de escolha e afirmação, mais o mundo precisa ser relativizado, assim como aqueles meus critérios mais convenientes e fundamentais. O preço da diversidade, e do próprio campo democrático, é a angustia, a intuição de que lá fora não existem mais garantias eternas, óbvias, místicas, transcendentes, metafísicas, mas apenas um fluxo de pura contingência.
Como já deve ter ficado claro, esse modelo epistêmico, aqui chamado de “Hermeneutica da Suspeita”, é recente, e muito especifico da nossa civilização. Quando investigamos registros etnográficos, como os Araueté, os Cuna, os Pueblo, os Koyukon, os Nuer, percebemos a completa inexistência desse registro epistêmico ácido, já que essas sociedades são governadas por princípios sólidos, óbvios, tradicionais, místicos ou até universais. Ao contrário de nós, a contingência aqui não é uma instituição, mas um peso que precisa ser removido o mais rápido possível. Por outro lado, em nossas democracias liberais, e seu campo de jogo contingente, existe apenas um espaço descentrado, em que a única constante são falas provisórias, justificativas pontuais e manobras frágeis. Um espaço onde critérios éticos (certo e errado), epistêmicos (verdadeiro ou falso), e estéticos (bonito e feio), não caíram do céu, não brotaram do solo, mas são sempre frágeis, contraditórios, muitas vezes simples escolhas individuais, contingentes e muito questionáveis. Em outras palavras, em um mundo governado por divindades, natureza, seres eternos, tradições sólidas, não existe o diverso como bandeira coletiva ou nada parecido com isso, justamente porque o critério de existência da diversidade não é ético, não depende do nosso caráter, do nosso grandioso coração, mas sim por um motivo epistêmico, envolvendo aqui um registro muito específico de conhecimento, a “Hermenêutica da Suspeita”. Existe sempre a dúvida de que algo precário paira nos bastidores, podendo ser jogos de linguagem, ideologias, performances, experiências, ou qualquer outro elemento suspeitoso. Nada é sólido, nada é óbvio, nada é simples, nada é eterno. Ou, como diria Habermas, vivemos em um mundo pós-metafísico, em um espaço em que tudo pode ser dissecado, reduzido aos menores denominadores imagináveis, sejam em análises materialistas, fenomenológicas, pragmáticas, vitalistas ou pós-estruturais.
Nesse cenário de pura contingência, como interpretar pessoas preconceituosas, pessoas que não acolhem o diverso? É preciso também interpretar cada uma delas por razões epistêmicas e não éticas. Muitos não acolhem a diversidade, simplesmente porque partem de registros epistêmicos “pré-modernos”, quase sempre baseados em dimensões universais, eternas, sólidas, místicas, transcendentes, e, portanto, muito bem legitimadas. Elas não acolhem a diversidade porque são más, ou burras, mas porque vivem ainda em um mundo sólido, sem traços de contingência pelo caminho. Quando Damares afirma “menino vestido azul e menina rosa”, ela tem uma noção muito sólida de gênero, nem de longe associada a discursos históricos, performáticos, ideológicos, ou algo do tipo. Provavelmente sua base epistêmica, digamos assim, seja religiosa, partindo do principio de que critérios são transcendentes, divinos, eternos e óbvios. Damares não acolhe a diversidade porque é má, ou burra, mas porque seu registro epistêmico recusa a hermenêutica da suspeita das democracias liberais. Quando ela olha para o mundo lá fora, da janela da sua casa, ela não enxerga discursos, experiências, fluxos, nem nada de contingente, mas divindades, transcendências, tradições, universais, etc. Damares resgata uma forma de operar que sempre foi a regra na história humana, em seus 300.000 anos de existência. A regra nunca foi a hermenêutica da suspeita, muito menos o pluralismo das democracias liberais, mas a existência de instituições muito bem legitimadas, na fronteira do óbvio.
Diante disso, compreendendo o custo de acolher um mundo onde a diversidade existe, ainda valeria a pena manter essa escolha? Se você é de esquerda, a resposta é SIM, vale a pena. Não importa o nível de angústia envolvida, eu estou disposto a acolher um outro diferente de mim. Esse é um gesto necessário e até inevitável. Não apenas defendo o movimento LGBTQIA, mas sempre acolho o +, a abertura indefinida e constante de possibilidades, já que o corpo não é uma essência, mas um processo. Por outro lado, se for alguém mais à direita, a resposta é NÃO. Os custos são altos demais. Quero apenas algo mais firme, sólido, confiável e previsível. Não quero discursos, análises, performances, interpretações ou debates. Não quero um mundo aberto ao infinito, com uma gama indefinida de reformulações e escolhas.
E então, caro leitor, depois de perceber que diversidade é também sinônimo de custo, de um tipo de aposta, qual sua opinião? Vale a pena acolher a diversidade, acolhendo também os riscos dessa abertura, ou talvez melhor buscar um cantinho mais aconchegante, homogêneo, que apenas ofereça a você um trajeto sossegado e confortável?
Referência da imagem:
https://valor.globo.com/carreira/esg/noticia/2022/03/23/diversidade-exige-novo-perfil-de-vagas.ghtml
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