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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

POLÍTICA: A Religião do Sujeito Secular




Antes de qualquer mergulho mais profundo, é preciso lembrar o papel que a política desempenha hoje nas democracias liberais, como a nossa. Ela não é apenas uma esfera como qualquer outra, não é um simples espaço onde pessoas se deslocam e conversam sobre algum tema aleatório. Na maior parte da história humana, e aqui me refiro aos 300.000 anos da nossa espécie, o espaço coletivo era organizado por dimensões externas, místicas, religiosas ou mágicas. Isso significa que critérios e valores não eram considerados históricos, ideológicos, performáticos, ou seja, contingentes, mas óbvios, sólidos ou mesmo naturais. Nas nossas democracias, por outro lado, esse mesmo espaço coletivo é reflexo de algo frágil, mundano, embora mais dinâmico e horizontal, como debates, encontros, militâncias, e assim por diante. Em outras palavras, a política ocupa hoje um espaço antes reservado à religião, enquanto um suporte que organiza as condições coletivas de convivência. Se não existem mais estruturas objetivas de mundo, se a legitimidade dos critérios não brota mais do solo ou despenca das estrelas, a única alternativa agora é debater, refletir, suspeitar. Quanto mais esferas como a religiosa se deslocam ao reino do privado, um fenômeno típico das nossas democracias, mais a política ocupa o terreno do que é coletivo, do que é comum. Nesse mundo desencantado, nos termos de Weber, a política se tornou um terreno ontológico, no sentido de estabelecer os padrões do que é real, redefinindo as fronteiras e os parâmetros da própria existência.


Isso significa que os movimentos sociais, sejam eles identitários (nova esquerda) ou de redistribuição (velha esquerda), apenas fazem sentido nesse universo contingente, em um mundo onde parâmetros são frágeis, históricos, performáticos ou discursivos. Em outras palavras, só existe feminismo e movimento LGBTQIA+ se categorias como gênero forem arbitrárias, meras construções modificáveis, ao invés de um simples papel atribuído por um ritual místico qualquer. Por exemplo, em uma sociedade Cuna, no Panamá, papeis de gênero são pré-estabelecidos, reflexos de rituais específicos, e não categorias performáticas de autoafirmação, muito menos discursos historicamente determinados. Da mesma forma, só existe movimento negro em um mundo onde a fronteira e hierarquia entre “grupos humanos” seja arbitrária, contingente e, portanto, inaceitável. Isso significa que em um universo governado por espíritos, criaturas místicas, forças cósmicas ou naturais, a política não existe, pelo menos não com a mesma centralidade das nossas democracias. Outras instâncias ocupam esse papel de organização do espaço comum, outras potências para além dos indivíduos e suas suspeitas. Os processos decisórios, os critérios organizadores da realidade, da mesma forma que papeis sociais, são oferecidos dentro de pacotes sólidos e super legítimos, quase sempre reflexo de algum tipo de rito de passagem ou prática xamânica. O mundo aqui não se organiza por deliberação humana, muito menos por indivíduos autosuficientes, mas por divindades localizadas no início dos tempos, todas em um fluxo de ritos muito bem legitimados.


Na medida em que o indivíduo ocupa um lugar especial nas democracias liberais, na medida em que instituições perdem seus contornos de externalidade e solidez, a política começa a ocupar um papel inédito na história humana. Na carência de critérios objetivos, naturais ou cósmicos, na falta de padrões místicos caídos do céu ou brotados do chão, o sujeito agora é responsável pela esfera ontológica, cabendo a ele definir o que é certo ou errado, verdadeiro ou falso e belo ou feio. Em outras palavras, não apenas o indivíduo se torna uma instituição, como diria Durkheim, mas o próprio espaço público ganha um tom ritualístico e até redentor, onde o mundo pode ser criado à minha imagem e semelhança, seguindo o fluxo do meu desejo. Se instituições não me agradam, ou me ofendem, a culpa não é minha, mas desses circuitos institucionais arbitrários que não acolhem meu corpo e minhas singularidades. Como diria Elisabeth Roudinesco, o EU nessa atmosfera contemporânea se torna soberano, autossuficiente, ou seja, empoderado. Não cabe a ninguém dizer quem sou, a não ser eu mesmo, enquanto sujeito que acolhe sua própria potência e suas próprias demandas.


“O que é família? O que é mulher? O que é religião? O que é certo? O que é belo?” Essas são perguntas que durante 300.000 anos eram respondidas com obviedade, quase sempre legitimadas por forças sólidas e externas. Hoje nas democracias liberais, ao contrário, essas perguntas não tem resposta, já que fazem parte de contratos privados, estabelecidos por cada um em circuitos específicos. Os reacionários, por exemplo, sintomas das próprias democracias, são figuras que negam esse pacto liberal, essa tentativa de privatização dos valores, quase sempre tentando retomar critérios “óbvios, “naturais”, “cósmicos” ou “religiosos”. O problema de Damares não é o autoritarismo, a agressividade, já que tudo isso é apenas efeito e não causa explicativa, mas o fato de recusar a assinatura do pacto liberal, assim como a recusa dos custos desse gesto. No seu caso específico, o seu problema é não reconhecer categorias de gênero como contingentes, abertas e reflexos de jogos de linguagem, performances ou arranjos históricos, ou seja, sua insistência em fazer do gênero um critério externo e inquestionável, ao invés de um processo de autoafirmação e descoberta íntima. Gênero, segundo ela, é um papel atribuído externamente, através de algum tipo de instância objetiva e universal, como a bíblia ou a natureza. Aos nossos olhos liberais, seu gesto reacionário nega a soberania do indivíduo, colocando acima dele outras instâncias mais nobres e sólidas.


Diante de tudo o que foi dito aqui, você poderia perguntar: “qual o melhor estilo de vida?”. É melhor viver em um mundo sólido com forças místicas e externas determinando o espaço comum de convivência ou é melhor viver em um universo cercado de digitais humanas, um mundo contingente, aberto, questionável e até arbitrário? Sem dúvida, eu prefiro a segunda, mas as coisas são mais complexas do que parecem. Cada um desses modelos de vida carrega custos, não existindo nenhum tipo de resposta gratuita, simples ou óbvia. Seja uma, como outra, ou até uma combinação das duas, todas implicam risco, até mesmo a minha própria escolha progressista.


Referência da imagem:


https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/movimentos-sociais-breve-definicao.htm





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