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Foto do escritorKarla Fontoura

“Pintou um clima?” Um relato sobre abuso e responsabilidade sexual em uma cultura pedófila





Quem teve acesso a fala bizarra do inominável Presidente da República explicando um encontro que teve com meninas de 14, 15 anos, “bonitas e arrumadinhas” onde “pintou um clima”, sabe como isso faz a gente lembrar o que significa ser observada na infância ou adolescência por um “velho tarado”.


Quando a gente é criança existem casos tão normais e corriqueiros que nossos pais chegam a avisar sobre o tal velho (normalmente de aparência esquisita e olhar estranho) e como precisamos nos manter distante dele. Infelizmente, quando eu era uma menina, não me avisaram que nem todos seriam idosos, sendo que alguns mal dariam sinais de aparência ou conduta de serem abusadores. Sem esse conhecimento e entendimento, eu vivi uma situação de abuso dentro de um ônibus.


Eu tinha 11 anos de idade, havia ganhado uma bolsa de estudo para um curso de inglês, devido às minhas boas notas na escola, e precisava pegar ônibus para ir até o local. Era a primeira vez que fazia isso e eu estava super nervosa. Até então, todos os deslocamentos que havia feito sozinha eram no entorno do meu bairro e vizinhança. Pegar o ônibus certo, entrar, pagar o valor, sentar, observar o caminho e descer no ponto de ônibus correto era um martírio. Minhas mãos suavam, meu coração palpitava e eu só me acalmava quando toda a jornada tinha acabado.


Foi numa dessas viagens de ônibus, com a cabeça em uma pilha de nervos, que me levantei e segurei na barra de ferro próximo à porta para ficar atenta ao meu ponto de descida. Estava com o olho na rua, sem perceber muito bem os movimentos dentro do veículo, até que sinto algo em minhas costas. Olho para trás e vejo um senhor de cabelos bem grisalhos, camisa de botão listrada e calça social marrom encostado perto de mim. Imagino que ele vai descer na mesma área e por isso está tão perto.


O ônibus estava bem vazio e ainda assim ele permanecia bem atrás de mim. Achei estranho, mas perder o ponto de descida era muito mais importante do que desvendar o motivo daquele homem estar ali. Ele se encosta ainda mais e sinto algo duro na minha lombar. Penso que seja o cinto dele. Aquela coisa esquenta e parece ainda mais dura. Fico atordoada e confiro de canto de olho onde estão os braços do velho. Um segurando a barra de cima e outro perto do quadril. Se não é o braço, é o quê? Eu não soube responder e agora o mais importante era descer do ônibus.


Durou provavelmente segundos entre o que eu estava sentindo no meu corpo e a minha saída do ônibus mas, foram mais que suficientes para ficarem guardados na minha memória. Cheguei no cursinho de inglês bem mais nervosa que o costume e não sabia o motivo para tal. Minhas mãos tremiam muito e meu coração saltava pela boca. A respiração parecia apertada e as pernas estavam bambas. Segui pra aula e mal consegui prestar atenção. Estava com a cabeça meio longe, perdida, mas nem pensava mais no velho. As sensações eram mais importantes e devoravam meu corpo. Passei a aula inteirinha tentando apenas administrar isso, porque era preciso me focar para, pelo menos, voltar pra casa sã e salva.


Esse evento do passado é um retrato claro que muitos abusadores não param no olhar quando observam um corpo que consideram atrativo. Quando o atual presidente escapa um “pintou um clima” no meio da frase, me faz pensar se aquele velho do ônibus pensou o mesmo de mim. Ele cogitou que, em algum momento, meu corpo, minhas roupas, meu jeito de olhar era um convite para ele fazer aquilo? Um homem feito, seja da idade que for, pode traduzir um convite para um toque ou “clima” apenas pelo olhar de uma criança? E quão assustador é saber que, independentemente da motivação do outro, ele acha que pode corresponder a esse chamado mesmo no caso de uma menor de idade.


Para isso, quero trazer uma outra situação que teve um final, felizmente, diferente e foi contado por um conhecido meu. Ele estava presente em uma escola nova que havia firmado uma parceria com a prefeitura local através de um projeto social e recebia crianças das comunidades mais pobres da cidade. Ele comenta que estava feliz com o andamento da escola e havia conversado animadamente com todas as crianças até que, em um dado momento, quando já estava sentado em um local mais recluso, uma garota miúda de treze anos de idade se aproximou dele. Ela falou como o achou engraçado e inteligente e, na medida que falava, aproximava seu corpo ao dele, ao ponto de sentar-se em seu colo. De acordo com ele, em segundos, ela já tinha colocado a mão dela em sua coxa.


Ele prontamente segurou sua mão, afastou-a do corpo dele e levantou, agradecendo seus elogios, mas afirmando que não era legal haver aquele toque entre eles. Ela o ouviu, deu risada e ainda insistiu um pouco mais. Ele andou para trás e disse que precisava ir para outro lugar. Quando ele compartilhou essa situação, o fez na frente de apoiadores e coordenadores da escola, chamando atenção para que o espaço se dedicasse a promover educação sexual e em ajudar aquelas crianças que poderiam provir de ambientes onde viveram abusos sexuais e reproduziam com normalidade esse comportamento por falta de conhecimento e cultura sobre sexualidade.


Percebem a diferença? Quando esse conhecido está diante de uma situação de “sedução” por uma menina de treze anos, ele entende que aquilo não era um clima. Ficou claro na sua consciência o que acontecia com aquela criança e, diante do seu papel como homem mais velho e maduro, coube-lhe interromper a situação imediatamente. Não há qualquer justificativa para reconhecer uma situação de sedução mesmo que hajam sinais aparentes disso. Quando não há dois adultos conscientes e sóbrios, existe zero clima ou atração, mas um sujeito em situação vulnerável e outro que se aproveita da situação.


Para deixar claro, no Brasil, os casos de assédio e abuso entre crianças e adolescentes é alarmante, compondo quase 80% das vítimas, sendo que muitas dessas situações acontecem dentro de casa. O meu caso, que ocorreu em um transporte público, também não é nada incomum, dado que 97% das mulheres já foram vítimas de assédio em meios de transporte. Em 2018 foi criada a Lei de Importunação Sexual, que torna crime “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”, com um a cinco anos de prisão.


Para finalizar, quero compartilhar uma prática que desenvolvi desde que me conscientizei sobre a cultura de abuso sexual e pedofilia que assola o Brasil. Quando estou na rua e observo uma criança ou adolescente sendo observada por um homem mais velho com aquele olhar nojento de lascívia, eu, mesmo com o coração apertado por saber que não há nada que possa fazer diretamente para proteger aquele corpo, oro. E minha oração é a seguinte: “Que os anjos lhe cerquem e lhe protejam de todo olhar, toque e intenção maldosa. Que seu corpo seja apenas seu e, um dia, possa alcançar total liberdade para transitar sem a importunação direta ou indireta de quem não respeita sua existência.”



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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Oct 21, 2022

O texto choca,mas o que choca mais ainda é a falta de choque de boa parte da população que passa por isso,abomina,mas continua a chancelar o voto na aberração. Isso é pior do que o caso em si,pois parece que foi encarado como piada,e não uma insinuação grotesca que gera artigos como esse. Estamos perdidos

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Marianna Farias
Marianna Farias
Oct 21, 2022

Um texto poderoso, sensível e tocante. Quem já vivenciou a violência sexual sabe como a monstruosidade permanece transfigurada na imagem do abusador. Obrigada pelo belíssimo texto e pelo forte relato!

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