Já escrevi neste site que os discursos seduzem e ultimamente nada tem sido mais sedutor do que diagnosticar tudo. Não existe diversidade, existem apenas normas morais sendo substituídas como normas biológicas, já diria a psicóloga Flávia Albuquerque (não é minha parente). Não existe diversidade, se algo foge a padronização, logo é algo que precisa ser diagnosticado.
Não existem crianças diferentes, todas tem que ter o mesmo marco de desenvolvimento biológico. Não existe muito interesse em um assunto, existe hiperfoco. Não existe precarização do trabalho, existe burnout. Não existe uma pessoa agitada, existe apenas hiperatividade. Não existe a preocupação por causa do desemprego, existe ansiedade.
Não existem mulheres que foram mães compulsoriamente, que fazem chantagem ou que simplesmente não ama seus filhos, existe mãe narcisista. Porque se ela não ama só pode ser uma doença visto que, dentro das normas morais que criamos, o amor de mãe é o único que existe e se essas normas não são seguidas dizemos que é doença.
Se alguém disser que esse texto está negando a existência de diagnósticos psicológicos, estará mentindo. Estou escrevendo sobre outra coisa! É sobre esse movimento de patologizar a nossa vida, suprimindo a existência de diversidade da nossa espécie e da produção de subjetividade do sujeito.
Temos que decidir se vamos lutar por diversidade e respeitar que as pessoas são diferentes ou vamos diagnosticar tudo aquilo que foge da padronização imposta aos nossos corpos, aos nossos interesses, aos nossos discursos.
Não irei negar, é mais fácil acreditar que uma criança tem algum “problema” por não querer ficar 4 horas sentada na escola, do que compreender que uma criança precisa de movimento, circularidade, pular, dançar, suar, correr, gritar, se sujar.
Também não vou negar que é mais fácil acreditar que eu tenho algum problema de concentração por não conseguir produzir na velocidade e quantidade que o sistema liberal me pede, do que questionar o próprio sistema.
É mais fácil também individualizar pautas que são coletivas, isentando o Estado de promover condições dignas de existência. Porque uma pessoa que é afetada pelo racismo, pobreza, machismo, homofobia tem suas demandas individuais, eu sei, mas que são afetadas por questões que são coletivas.
Essas dores e sofrimentos, oriundos dessas questões, estão sendo influenciadas e produzidas pela dimensão coletiva e se a ideia é promover saúde mental, precisamos pensar que esse conceito é sobretudo POLÍTICO.
Não nego meu interesse por uma abordagem que se concentre nessas questões, como a psicologia histórico-cultural, porque nesses tempos de “tiktokização” o diagnóstico é banalizado e a promoção da patologização é difundida. Por isso, penso que uma psicologia que individualiza essas questões está a serviço de uma agenda ideológica que pouca se importa com o coletivo.
A psicologia que entende tudo como doença, sem considerar as circunstâncias históricas de vida daquele indivíduo, sem considerar os aspectos raciais, de classe, de gênero, da cultura, do social, está a serviço de quem?
A psicologia que não considera a diversidade e que diagnostica qualquer fuga do padrão como doença, beneficia quem? Somos diversos ou tem uma regra e se essa regra não for seguida é doença?
O que precisamos é de um Estado que promova comida na mesa, oferta de emprego, educação, saúde, políticas públicas para equiparação de gênero, raça OU será que precisamos descobrir que nossa dor é uma doença? Eu fico com a impressão que existe uma caixa e que se um fio de cabelo ficar para fora vão dizer que temos alguma doença.
Encerro com três afirmações:
PATOLOGIZAR é a agenda do capitalismo.
INDIVIDUALIZAR PAUTA é a agenda do capitalismo.
MEDICALIZAR é o puro suco do capitalismo.
Ótimo texto, todo discurso de saúde mental que não considera as condições materiais de existência é muito perigoso. Seu texto também me fez lembrar de O Alienista, do Machado de Assis, no sentido de que o normal e o patológico depende muito da régua, e essa régua tem tudo a ver sobre poder