Era junho de 2014 e minha barriga era uma grande melancia preenchida pelo meu pequeno que a qualquer momento poderia nascer durante o inverno de Curitiba. Eu estava preocupada com as arrumações da casa que eu tinha acabado de me mudar e que ainda precisava de uma reforma. O quarto do bebê estava um caos. Nervosa, eu converso com a doula e a enfermeira obstétrica que acompanhariam meu parto domiciliar e digo com a voz embargada: “Não tenho nada pronto. Eu nem passei as roupinhas do bebê! Mas… nem sei se precisa… Precisa passar? Para tirar as bactérias? Acho que sim, né?”. A enfermeira e a doula se entreolham com um sorrisinho. “Você quer fazer isso?”, pergunta uma delas. “Eu não sei. Me disseram que era o certo por causa das bactérias e tal. Ou não?”. As duas me responderam sem nenhuma palavra, apenas com um sorriso amigável e minha própria cabeça raciocinou que, no momento em que passasse aquelas roupas e as colocasse na gaveta, nada as impediriam de ter acesso a algum tipo de bactéria novamente.
De onde veio aquela ideia? O que em mim me fez pensar que, cansada e exausta, de barrigão despontado, ainda precisaria passar cada pedacinho de roupa do meu bebê? Mainha, claro que era ela! Mais ainda, era a imagem dela abrindo a tábua de passar, esquentando o ferro e trazendo pra sala a trouxa de roupa limpa que ela passaria por horas assistindo TV. Adolescente, eu aprendi a tarefa e a acompanhava no abre, passa, dobra e guarda. A ideia nunca era deixar a roupa alisada pelo calor, afinal, morando na calorosa cidade de Salvador, as nossas roupas eram de tecidos leves, que amassavam pouco ou que não exigiam tamanha formalidade. O foco era “matar as bactérias” como mainha dizia, ao ponto dela passar todas as calcinhas e cuecas, com um tempo extra de calor na parte do tecido que tinha contato com nossas partes íntimas. Com orgulho, mainha dizia que assim não ficaríamos doentes porque toda a bactéria seria eliminada no calor.
Por anos, assisti ela passar horas inúteis da vida cumprindo esse teatro da higiene que, por alguma razão, adentrou a mente dela e a fez se sentir responsável por uma pilha de roupas limpas que precisavam de um ritual de descontaminação imaginário. Essa história ilustra bem uma das centenas das conversas que as mulheres reproduzem, endossam e espalham para suas descendentes sobre o lugar doméstico da mulher. Ainda que eu não tenha me importado com isso e até tenha convencido minha mãe, um dia, para que parasse de passar minhas roupas (e minhas calcinhas!), ao ponto de sorrateiramente tirá-las do varal antes que ela tivesse a chance de pegá-las, quando me vi no lugar de mãe, ou seja, o lugar dela, me percebi fisgada por esses discursos inúteis.
Acredito que qualquer mulher pode ilustrar alguma história onde a vida doméstica era utilizada como um mecanismo de validação de sua existência. E nem pensem em algo muito elaborado. São os detalhes que escondem a imposição do corpo feminino como especialista do lar. São os panos de prato alvos que sinalizam que somos uma “mulher de verdade”. São os filhos educados na casa da visita que abrem os sorrisos da pontuação da feminilidade. São as panelas areadas que nos entregam o troféu de dignidade humana. E quem nos disse isso foram nossas próprias mães após visitarem amigas, irmãs ou vizinhas e soltarem a máxima: “Você viu que desleixada? O pano de prato encardido. Deus me livre!”. Ou: “O filho de fulana não parava quieto. A mãe parece uma tonta. Ainda bem que você se comportou porque eu te eduquei do jeito certo.”
A simbologia da vida doméstica para um corpo feminino vai muito além da manutenção básica de uma casa. Ela carrega uma série de inutilidades ou lendas domésticas que ditam para nós, desde a infância, que é preciso ser especialista no lar, ainda que você trabalhe fora por horas e tenha muitas outras demandas na vida. Mainha era uma mulher moderna que trabalhava como funcionária pública, porém, ao voltar para casa, a faceta dona de casa era adotada com mais orgulho do que seu cargo administrativo no postinho do bairro. Era nas panelas areadas que ela mostrava para o mundo que, mesmo trabalhando, ela não tinha falhado em ser a mulher dedicada ao lar. Era nas notas do boletim dos filhos que ela esfregava na cara das vizinhas que eles estavam sob seu olhar atento, mesmo ela estando exausta de esfregar o chão da cozinha até ele ficar reluzente, sem um pingo de gordura.
O livro “A Mística Feminina” de Betty Friedan traz uma luz sobre porque a dimensão doméstica é tão forte e simbólica para a figura feminina. Essa obra foi elaborada em 1963 e retrata um estudo sobre a cultura americana da mulher/esposa/dona-de-casa que se tornou um fenômeno particularmente dominante na época, fazendo uma geração de meninas abandonar os estudos, as carreiras e os sonhos pessoais para viver a família perfeita, o sonho americano da mulher dedicada ao lar e a família, dentro de uma mística feminina. No entanto, os relatos e números apresentados pela autora indicam que esses espaços não eram suficientes para trazer satisfação total para as mulheres. Ela esclarece:
“A mística feminina implica uma escolha entre “ser mulher” ou arriscar as dores do crescimento humano. Milhares de pessoas, reduzidas pelo ambiente a viver ao
nível biológico, embaladas em confortáveis campos de concentração por um falso
sentimento de segurança anônima, fizeram a opção errada. E a ironia da escolha é
que a mística apresenta a «realização feminina» como prêmio de ser exclusivamente
esposa e mãe. Mas não foi por simples acaso que milhares de mulheres não
alcançaram esse prêmio.” (pg. 397)
O livro de Friedan deixa claro, desde aquela época, como a função materna e marital não satisfaz plenamente a necessidade de uma mulher, que pode ter a vida doméstica como uma parte de si, mas que precisa de muito mais: de realizações profissionais e pessoais únicas. A minha geração já saiu em vantagem ao ter acesso a esse tipo de entendimento desde sempre, porém, foi inevitável para nós internalizar ideias e soluções da vida do lar que, olhadas microscopicamente, são completamente tolas e inúteis. Quer dizer, talvez elas sirvam para validar nossa existência para certos parentes e pessoas que ocupam esse lugar de supervisão da qualidade da nossa feminilidade segundo o status da nossa casa ou da nossa família.
Por isso, quando você entrar no lar de uma mulher e ela exaltar seus móveis limpos, suas roupas alvas, suas panelas brilhantes e seu chão impecável, saiba que essa é uma forma que ela encontra de ter a validade da sua existência, ainda que ela consiga se realizar e muitas outras atividades e ocupações. Esses inúmeros detalhes inúteis dizem a ela, e a todas as mulheres em sua volta, o que e quem será digna para acatar a feminilidade perfeita, um total espaço imaginário que esconde a opressão contra essas sujeitas e suas individualidades.
FONTE: FRIEDAN, Betty. Mística feminina – Tradução de Áurea B. Weissemberg. Rio de Janeiro: Vozes, 1971.
Fonte da imagem: https://www.instagram.com/petitalice/
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