Lembro-me de que em 2018 comecei a assistir uma série muito famosa baseada no conto de Aya, "The Handmaid's Tale". A série apresenta um cenário onde, após um atentado terrorista, uma facção católica extremamente conservadora toma o poder, impondo dogmas como leis e retrocedendo em vários direitos já conquistados. Na época, achei a série extremamente pesada e não consegui terminá-la, especialmente por causa do cenário político que estávamos vivendo no Brasil.
Assistir a tantas atrocidades e perceber que aquilo não se limitava a um cenário distante do passado, mas sim a uma possível continuidade alarmante do nosso presente, foi profundamente perturbador para mim. A sensação que tive foi de que todas as pessoas deveriam assistir a essa série; ao fazê-lo, poderiam perceber a gravidade de alguns discursos que têm ganhado notoriedade no cenário político nos últimos anos.
Tudo bem que discursos alarmantes sempre existiram na história e que não há tanto exclusivismo nisso, mas o que preocupa é a forma como as democracias representativas têm dado acesso a esses discursos, que se tornaram cada vez mais recorrentes nas disputas políticas. Mais inquietante ainda é perceber que esses discursos vêm sendo proferidos por candidatos eleitos, e que propostas de leis com esse teor estão sendo discutidas no Brasil.
Vários momentos recentes da política brasileira me fizeram lembrar dessa série. A reflexão que tive com base nela converge com algumas discussões das ciências sociais, especialmente a crítica à noção evolucionista. Há uma visão de que as conquistas sociais são permanentes e que continuaremos a avançar, uma perspectiva positivista impregnada no meio social, que traz uma autoconfiança perigosa. Essa confiança nos faz subestimar políticas de retrocesso e nos impede de reconhecer que direitos podem ser perdidos.
Frequentemente, ao observarmos grupos políticos se organizando contra retrocessos, vemos, na sociedade em geral, uma crença de que os erros cometidos no passado são apenas coisas grotescas de pessoas sem noção e que isso faz parte apenas do nosso passado. Pensamos que eventos como o Holocausto ou a escravidão não podem mais acontecer porque já temos consciência disso, portanto não possibilidade de cometermos atrocidades tão grandes, pois nós evoluimos e somos diferentes, mais sabidos. Contudo, isso é uma falácia. A realidade mostra que eventos crueis continuam acontecendo e nos comportamos de maneira apática, assim como muitos no passado.
Essa noção, que aqui chamo de noção evolucionista, nos impede de ter uma visão crítica. A ideia de que nossa cultura atual, o nosso presente, é superior e que não repetiremos erros passados é enganosa. Por exemplo, ao interagir com alguns grupos religiosos que defendem pautas conservadoras e retrógradas, percebo que, embora tenham consciência dos erros do passado e que, inclusive, sabem que muitos desses erros foram feitos por baixo de um verniz religioso, repetem práticas similares hoje. Se tivessem um pouco mais de criticidade, perceberiam que podem estar cometendo os mesmos erros que grupos religiosos cometeram no passado.
Os verdadeiros interessados nisso tudo, as elites, sabem muito bem como utilizar essas estratégias a seu favor. Assim como na série, é comum ver esses grupos se aproveitando de um cenário de caos para apresentar soluções aparentemente fantásticas, muitas vezes centradas na ideia de "reconstrução" do país. Isso me lembra uma passagem do prefácio do livro “A Sociedade em Rede” de Manuel Castells, em que ele afirma que, em momentos de crise, quando as estruturas balançam, as pessoas precisam de algo para se apoiar. Nesse caso, o apoio tem sido direcionado para esses grupos políticos, que já estão preparados para apresentar soluções. No entanto, o "Re" de "reconstrução" aqui não é inocente; ele representa um retrocesso deliberado. Essas elites oferecem uma volta ao passado disfarçada de progresso, explorando o medo e a incerteza para consolidar seu poder e desfazer avanços democráticos.E esse desfazer dos avanços democráticos não é apenas por capricho ou apego a um modo de vida. Há um conjunto substancial de trabalhos que mostram e argumentam sobre os interesses econômicos por trás de alguns retrocessos. Por exemplo, estudos feministas e teorias sobre a economia do cuidado revelam como a manutenção de estruturas patriarcais beneficia economicamente certos grupos. Essas pesquisas indicam que, ao limitar os direitos das mulheres e restringir seu acesso ao mercado de trabalho formal, certos setores econômicos se beneficiam da manutenção de um exército de trabalho barato e não remunerado, principalmente nas esferas doméstica e de cuidados. A "reconstrução" proposta pelas elites muitas vezes visa perpetuar essas desigualdades, garantindo que os benefícios econômicos continuem fluindo para os mesmos grupos privilegiados. Assim, os retrocessos democráticos servem a interesses econômicos específicos, mascarados como medidas de estabilização e progresso.
Os seus métodos retrógrados envolvem frequentemente medidas drásticas, incluindo a manipulação de escândalos políticos e acusações infundadas para desmantelar lentamente qualquer legitimidade que o governo possa ter construído, examinando todas as formas de meios de comunicação em busca de possíveis buracos. Eles evitam discutir quaisquer projetos ou ideias ideológicas de longo prazo; raramente vemos uma avaliação baseada nos resultados da ação estatal. Em vez disso, a esfera pública está envenenada com notícias falsas, histórias não verificadas e noções preconcebidas, velhos dogmas ideológicos misturados com estereótipos morais cuja data de validade já passou.
As perspectivas futuras para a nossa nação são sombrias sem uma resposta poderosa da população e da esfera política. Salvemos a esperança! A participação social precisa ser salva como uma ferramenta eficaz para a transparência – fortalecendo o Estado democrático e promovendo aquele diálogo intersetorial que é tão necessário, tão urgente para o desenho, implementação e avaliação de políticas públicas plurais e sólidas.
Assim, a maior importância deve ser dada para manter um alto nível de criticidade. Temos que continuar monitorando e examinando nossas ações, bem como nossas palavras. O nosso futuro só pode ser salvaguardado por estes direitos que conseguimos alcançar; e não nos serão novamente tirados - excepto pela força das armas - desde que não caiamos nos erros dos nossos antecessores, a quem condenamos tão severamente pelos seus crimes.
Assim devemos manter um alto grau de crítica e sempre avaliar nossas ações. É o único caminho que garante o futuro onde os direitos que conquistamos sejam mantidos e ampliados sem termos que cair naqueles erros históricos que um dia tanto criticaríamos, não?
Prestemos atenção à educação crítica, como um aprendizado que deve sempre ser utilizado em nossas vidas. O conhecimento é a única via através da qual podemos capacitar as gerações futuras para serem capazes de identificar e abordar o discurso de ódio e as práticas autoritárias. Cultivemos uma cultura que defenda o respeito pelos direitos humanos – valorizando a diversidade na essência do seu contributo para criar um lugar onde todos desejem viver e sentir-se seguros; onde todos tenham oportunidades iguais de ajudar a construir um mundo justo e justo – para que possamos evitar cair nos mesmos erros cometidos no nosso passado, para que possamos construir um Brasil que seja verdadeiramente democrático e solidário.
Concluindo, a educação crítica é uma área onde temos de apostar. Só através da posse de conhecimento poderemos permitir que as novas gerações sejam capazes de identificar e lidar com o discurso de ódio e as práticas autoritárias. Devemos promover uma cultura que defenda o respeito pela diversidade nos direitos humanos – através da qual todos possam contribuir para um futuro mais justo e equitativo, além de serem solidários por natureza. Isso evitará que a história volte a acontecer desta forma, além de criar um Brasil verdadeiramente democrático, seja para as pessoas que lá vivem.
Em última análise, é evidente que a nossa sociedade está no ápice de uma decisão crucial entre progressão e regressão. A série narrativa "The Handmaid's Tale" transmite um conceito sombrio, mas não distante, do que pode ocorrer quando a apatia prevalece e as declarações retrógradas são maioria. Exigimos, mais do que nunca, supervisão constante e envolvimento ativo em questões políticas. Aumentar o pensamento crítico e a transparência institucional é crucial para garantir que os direitos alcançados sejam salvaguardados e reforçados. Só assim poderemos criar um futuro com a democracia e a justiça social como característica preeminente, evitando a recorrência dos erros históricos que tanto criticamos. É uma batalha constante, mas é uma batalha que não deveríamos querer perder.
Referência da Imagem: https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-44294676
Marcos,há vários problemas na implantação de uma educação crítica. Primeiro,que o meio educacional está poluido,com turmas disfuncionais e professores mentalmente esgotados. Segundo,as redes sociais continuam poderosissimas. Terceiro,a sociedade tá num graubde apatia e passionalidade que enoja. E quarto,o mesmo cara que acha absurda certas pautas,vota no cara que propôs a pauta absurda. Émuita desinformação e ambiguidade pra dar conta! Sinceramente,não dá pra confiar em grandes parcelas da sociedade. Elas estão absortas e não vejo possibilidades no horizonte dessa situação ter o mínimo de reversão.