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O QUE UM SOCIÓLOGO APRENDE QUANDO SE CASA COM UMA PSICÓLOGA?




Eu sou um sociólogo de nascença, digamos assim; uma criatura estranha inclinada a reflexões sociológicas desde o começo, desde o início da minha trajetória na Universidade Federal da Bahia, a famosa UFBA. Ao longo de vários anos de estudo, e dezenas de disciplinas específicas, aprendemos que a sociologia é algo crítico, incrível, quase sempre sinônimo de hermenêutica da suspeita, um gesto de investigação profundo, ácido e radical. Na maior parte das vezes, eu acreditava que problemas aconteciam no mundo porque humanos não pensavam direito, talvez por serem alienados, ou porque sofriam de alguma interferência cognitiva da mídia, governo, capitalismo ou algo do tipo; ou talvez porque eram más e contrárias aos interesses corretos, tramando cada detalhe nas sombras com um desejo sádico e sempre traiçoeiro. Durante muito tempo acreditava que essas eram as únicas formas de viver minha profissão, ou seja, com extrema arrogância. Nesse cenário bem narcisista, me restavam apenas duas alternativas: a) ou me sentia mais esperto do que os idiotas lá fora, b) ou acreditava ser mais ético do que os monstros sem alma nos bastidores da realidade. Tudo era óbvio, tudo parecia simples, até que de repente conheci uma psicóloga, uma mulher que mudou minha vida por completo, até mesmo invadindo as fronteiras sólidas e invioláveis das minhas muralhas sociológicas.


Na sociologia, com sua hermenêutica da suspeita arrogante, o critério de análise quase sempre é epistêmico (verdade ou falsidade) ou ético (certo e errado), como se essas fossem as únicas formas de compreender o mundo e suas contradições internas. Por exemplo, se alguém faz algo bizarro, se passa do limite, do tolerável, nossa linha argumentativa é muito simples, quase automática: ou a pessoa é burra ou ela é má. Ou suas faculdades cognitivas estão sendo comprometidas pela falta de conhecimento ou por alguma manobra alienante gerada por estruturas e sistemas, ou talvez seja apenas um sádico se deliciando com a dor e a violência de um outro concreto.


Quando pensamos na psicologia, e digo isso por ser casado com uma psicóloga, além de aprender muito com ela em seu trajeto clínico, o critério de avaliação (e até intervenção) muda bastante. Ao invés de avaliar um “problema” de forma epistêmica, ou ética, o psicólogo usa normalmente um critério estético, de sentido, já que todo sintoma, mesmo os mais bizarros e perigosos, é uma forma de organizar a experiência, de oferecer um tipo de propósito a um mundo muitas vezes caótico. Em outras palavras, uma pessoa tem TOC (transtorno obsessivo compulsivo) não porque seja burra e falte conhecimentos elementares sobre como a causalidade das coisas funciona, muito menos porque seja má, mas simplesmente porque o TOC é uma forma de tecer seu próprio campo experiencial, muitas vezes a única estrutura simbólica restante até aquele momento.


O que seria de nós na sociologia, com sua hermenêutica da suspeita, se o critério de análise e intervenção fosse estético, como o dos psicólogos? O que seria enxergar bolsonaristas, fundamentalistas religiosos, reacionários, e uma série de figuras que desprezamos, por um critério que ultrapassa o epistêmico ou mesmo o ético? Quais vantagens teóricas e até políticas existem nesse campo alternativo de intervenção? Não seria mais eficaz?


Ao invés de uma prática verticalizada e arrogante, o psicólogo sempre negocia com o corpo diante de si, tentando achar pontos de contato, pontes de acesso. O objetivo não é manter o outro longe através de uma série de termos vulgares e convenientes (“monstro”, “demônio”, “sem alma”, “fascista”, "estranho", "louco" etc), mas compreender a lógica de sentido do sintoma. Ao invés da fala descontrolada da sociologia, temos a escuta cuidadosa do psicólogo, um espaço onde o protagonismo não é o meu EGO intelectual e minha necessidade de autoarfimação ética ou epistêmica, mas o corpo de um outro que me ultrapassa, de um corpo gritando por ajuda.


Enfim, feliz dia dos psicólogos, principalmente à minha psicóloga preferida. Obrigado por fazer de mim um profissional e um ser humano cada vez melhor. Parabéns por esse papel tão necessário nos dias de hoje.


Referências da imagem:

https://universo.uniateneu.edu.br/2021/07/08/historia-da-psicologia-conheca-e-se-apaixone/


2 Comments

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
Aug 29, 2022

Texto muito legal mesmo,Thiago. O choque de percepções sempre nos alerta para uma visão ampla e longe de enviesamentos. Ela também pode ter aprendido bastante,embora a psicologia seja menos soberba que uma parte das Ciencias Sociais

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Que texto legal! Falar abertamente das suas limitações e como o outro participou do seu processo de aprendizagem! Sobre a contribuição da psicologia à sociologia, lembrei na hora da entrevista com um cara que foi líder de um grupo de extrema direita e se apaixonou por uma pesquisadora anti-fascista que investigava o grupo e mudou sua percepção. Ele explica que um dos principais motivos que fazem as pessoas aderirem a essas ideias é o medo da perda, de que o grupo oposto tire seu lugar. Basicamente o medo que a escassez atinja a sua comunidade com a presença do grupo "inimigo".

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