Minha não binariedade chegou na minha expressão, na minha liberdade, na minha autoestima, mas, por vários motivos, ainda não está completamente presente na minha maternidade. Por quê?
Escrever esse texto vai ser uma forma de tentar achar respostas para mim mesma. Estou pensando nesse assunto há muito tempo, mas, fui especialmente instigada por ele quando meu filho, na sua doce molecagem repetiu comigo a brincadeira que fazia com seu primo. Ele dizia opções improváveis a ele, como: “João, você quer ser mulher ou mulher?”, o primo não entendia a pergunta e meu pequeno soltava uma gargalhada ao perceber que o primo queria responder “homem” mas, não tinha essa opção na pergunta. O que aconteceu é que ele se volta para mim e faz a pergunta: “E você, mamãe? Quer ser… menino ou menino? Hahahaha!”. Eu respondo: “Eu posso ser menino”. Desajeitado, ele pára de rir e aceita a resposta com uma enorme interrogação na cabeça.
Cogitei que aquele era um bom momento para explicar para ele sobre a minha não binariedade, sobre como não me identificava com um pólo específico dos gêneros e que amava transitar por eles e, por vezes, me sentir além deles. Mas, travei. Não vi naquele olhar de menino a possibilidade ainda de falar diretamente sobre o assunto. E qual motivo para tal? O enfrentamento do machismo. Os diálogos com ele sobre o assunto homem e mulher ainda estão em um lugar de desmantelar as visões sobre o que a sociedade dita a respeito da atuação e pertencimento do gênero feminino e masculino e as relações e dinâmicas de poder entre eles.
Apesar de ele ser uma criança doce, sensível, que ama jogos de luta e também adora desenhos delicados sobre bebês que choram lágrimas mágicas, sempre encontro falas construídas pelo ditame da opressão machista e binária. Ele já alegou algumas vezes sobre cores serem masculinas e femininas, assim como tipos de roupas e brinquedos. Já se assustou com “homens vestidos de mulher” quando espiou o programa que eu estava acompanhando na TV. Chegou a desistir de conversar com crianças porque só “tinha meninas” e apontou corpos para dizer que “aquele homem não deveria usar esse tipo de roupa”.
Para cada um desses eventos, eu me aproximei dele, perguntei o motivo para tais informações e ouvi suas categorizações, do que ele acha que pertence a uma ou outra pessoa de acordo com sua aparência dita como feminina e masculina. Após ouvi-lo, apresentei a ele minhas experiências de ver outras possibilidades através de vídeos, fotos e livros. Existem mulheres que sabem pilotar carros de corrida, o pai dele já usou roupas rosas, eu gosto de usar bermudas da seção masculina da loja e existem homens que pintam as unhas e usam maquiagem. Em alguns momentos, ele fica meio confuso e decide sair para brincar. Em outros, o menino fica espantado, me perguntando várias vezes se aquilo realmente existe.
Nesse sentido, dá para perceber que não existem conversas diretas sobre não binariedade, gêneros como constructos sociais ou qualquer estratégia pedagógica para chegar nesse lugar. Eu prezo para que o olhar dele sobre as pessoas e os corpos não ditem onde ou quando eles devem agir. De fato, vejo que a não binariedade parece ser sempre atropelada pelas demandas básicas que o machismo impõe à mulher, ao colocá-la a serviço da conjuntura masculina, e também ao homem, ao impor uma dita performance da masculinidade. Essas questões atravessam mais rápido que qualquer tentativa de eu desamontoar a ideia de gênero no meu pequeno.
Acredito que esse é um dos principais motivos que me impedem de tratar com ele diretamente, e com todas as adaptações necessárias a uma conversa com uma criança de oito anos de idade, às questões de gênero como uma imposição social recente e precedente para a manutenção do patriarcado. Também me sinto sozinha nisso. Minha família não se interessa pelo assunto. Meus amigos me respeitam mas, dificilmente utilizam pronomes neutros (tenho eles como opção). Ou seja, em nossa volta, não há algo tão concreto que desperte a curiosidade do meu pequeno e que saia da sua caixinha de sociabilidade com amigos e colegas de escola.
Pelo visto, não fecho esse texto com uma resposta clara sobre o que vou fazer a respeito desse assunto. Entendo a complexidade da questão e como a opressão que o machismo causa cria empecilhos para eu focar em praticar com mais lisura e intensidade a não binariedade com quem convive comigo. À meu pequeno, eu espero que essas primeiras conversas lhe dêem abertura para dialogar sobre esse meu lugar, na medida em que esse assunto se tornar um papo comum na sua convivência com mais pessoas. Sou mãe, sou não binária e um dia quero exercer confortavelmente a minha não binariedade na maternidade.
Fonte: https://www.soteroprosa.com/single-post/feminina-ou-masculino-a-quest%C3%A3o-da-n%C3%A3o-binariedade
Muito potente seu texto, parabéns!
Acho que a geração do seu filho deve encarar numa boa futuramente essas questões. Pot enquanto,ele e outras crianças ainda estão eivados de binarismo.