Mês passado falei sobre a questão da morte no texto “Você vai MORRER!”. Agora dou complemento com um outro assunto que acompanha a morte em suas diversas nuances, o luto. Estar em luto é um processo individual, intrasferível e também coletivo. A tragédia que estamos assistindo no Rio Grande do Sul talvez seja o exemplo mais próximo: milhares de pessoas desabrigadas. Perderam casa, emprego, fonte de renda, a cidade em que viviam e também amigos e/ou parentes. Há luto, há sofrimento, dor pelo que se perdeu ou por quem se perdeu.
O luto é algo muito particular, apesar de haver comportamentos similares entre pessoas e culturas. Fala-se muito sobre as fases do luto, mas não vou me ater a este conteúdo aqui. Prefiro o que Margaret Stroebe e Henk Schut falam sobre o luto: não há uma finalização e simplesmente acaba. Há um “modelo dual”, onde ora estamos bem e em outras estamos mal. Como um pêndulo, que vai de um lado para o outro. Ou seja, lembranças como cheiros e músicas, por exemplo, podem despertar uma tristeza imensa por alguém que partiu, mas pode também provocar alegria e vontade de celebrar quem não está mais por aqui.
Esse modelo humaniza o luto, pois não é errado sofrer, ficar triste e padecer por quem morreu ou pelo que se perdeu. Ao contrário, é importante enxergar-se nesse processo. Ver-se sem se ver, pois no luto a sensação que se possui é de perda identidade. O “chão se abre”, cai-se em um buraco fundo, escuro e solitário. Há sintomas muito comuns, principalmente quando logo ocorre a perda: a raiva, a impotência, o questionamento “por que eu?”, a falta de sentido em tudo que nos dava prazer antes (desde assistir a uma novela até o próprio sexo).
Ao enlutado, cabe uma dor impossível de ser nomeada. Parece que o corpo inteiro é uma grande dor interna e externa. Muitas vezes com sintomas biológicos como perda de apetite, insônia, apatia e dores de cabeça. Dói, dói e tudo perde sentido. Olhamos ao redor as pessoas felizes e questionamos para que tanta felicidade? Parece que somos empurrados para dentro. O centro do mundo somos nós em nosso luto. Ligados a quem ou ao que se foi. Por isso sua particularidade. O luto nos pertence, é algo que vai aparecer a partir das nossas vivências, ou não, com a morte.
Para aqueles que possuem dificuldade em externar seus sentimentos ou querem se mostrar fortes, a forma de enfrentar o luto será uma. Para outros que possuem facilidade em chorar ou ficarão em estado de torpor, o processo será diferente. Os contextos influenciam e daí vem a questão do coletivo. Por exemplo, podemos dizer que o Brasil vive o luto pelo Rio Grande do Sul, pois o que ocorre lá mobiliza todo o país, nem que seja no processo de ajudar. Mas ninguém poderá experimentar o que os gaúchos passam e cada gaúcho terá a sua forma de lidar com este luto.
Em uma cultura onde a felicidade virou normativa, viver o luto é vergonhoso. São apenas cinco dias de licença trabalhista para enlutados. Como se depois desses dias estivesse tudo bem, o mundo já fosse diferente. Se da morte não se fala, do luto emudece-se! As pessoas não sabem o que dizer ao outro, e daí se afastam. Em outros momentos oferecem o que possuem: chamar a pessoa para ir para festas, um bar, um cinema, dizer que “vai passar” ou que “já estava na hora mesmo”. É preciso estar bem! Enlutados costumam ouvir muito: “ainda chorando por fulano/fulana?” ou “ainda chorando por isso?”. Não, não há como “carregar a energia” da pessoa como se faz com um celular. Luto é moroso, doloroso e reforço, coletivo.
Há os lutos invisibilizados, pessoas que a sociedade não permite viver este processo. Pessoas que moram em áreas de grande violência, onde a morte por parte das guerras do tráfico é comum, convivem com a morte diariamente. Na maior parte das vezes essas pessoas não têm como sair daquele local e não possuem tempo para enlutar-se, pois há o “pão de cada dia” que precisa ser conquistado. Outro exemplo, é esse discurso das mães negras guerreiras, na maior parte moradoras da periferia. Seus filhos morrem e elas possuem outros a sustentar. Não, não são guerreiras, são caladas de viverem a sua dor.
Para pessoas em situação de rua, travestis, população carcerária, prostitutas, entre outros tantos, não é dado o direito de viverem seus lutos. É preciso SOBREviver para não fazer parte das estatísticas de morte. Há ainda o luto dos “sobreviventes” (pessoas que perderam alguém por suicídio) ou até mesmo aquela pessoa que está aliviada – sim, minha gente, aliviada – porque alguém se foi. Para este último caso vale lembrar casos de pessoas que acompanham alguém em doença terminal e vivem anos em dedicação a esta pessoa (lutos antecipatórios aparecem aqui) ou pessoas que foram violentadas no passado por alguém que se foi. O sentir é um direito do enlutado e por vezes esse sentir é o alívio por quem se foi. E isto é devido!
O luto não pode ser visto com regras fechadas e dentro de uma visão clínica de que são fases e que ele acaba. Talvez ele não acabe nunca, ele é sim, ressignificado a cada dia. O luto precisa ter seu foco ampliado para a interseccionalidade que o atravessa. Há quem é dado o direito de enlutar-se? é uma das perguntas. A outra talvez seja: Por que não posso entristecer-me com o que perdi? É um direito! E ainda outra: Por que não posso não sentir nada por quem se foi já que este outro me fez sofrer enormemente? São muitas as possibilidades porque somos muitos e com especificidades diversas.
Luto existe porque há vínculo, se há vínculo há afeto. Se há afeto, torna-se impossível extinguir o sentimento que se tinha pelo Outro (pessoa, pet, emprego, casamento etc.). Onde há perda por algo que se tinha afeto, há dor. E por vezes, onde há dor, há sofrimento com toda a sua diversidade de sentires. E por que não se experimentar na fragilidade e vulnerabilidade? Só podemos trabalhar o que dói em nós se nos permitirmos sentir, individualmente e/ou coletivamente. Caso contrário, teremos entulhos de lutos não vividos e bombas prontas para explodir em dor, ódio, violência e doenças.
Xico que texto lindo e cheio de humanidade!🌻❤️
Embora acredite que vida e morte se apoiam e se completam, que o nosso corpo é parte do corpo da Terra e que a nossa essência está além do tempo, compreendo por experiência que o luto é um amparo amoroso que nos sustenta e ajuda a assimilar o sentimento confuso e doloroso que nos toma ao pensarmos nas pessoas amadas, cheias de projetos e ideias que já não estão mais aqui. As lágrimas nos socorrem quando vemos algo muito belo que queríamos tanto mostrar para quem amamos. Chega um momento que a saudade se torna uma espécie de conexão com quem já se foi.
Meu abraço solidário a todos que tiveram o…
Sensacional!!!
Nossa, me fez pensar muito na minha mãe... Ela não consegue celebrar o dia das mães porque lembra de sua mãe. Só que a mãe dela faleceu antes que os filhos delas nascessem e essa tristeza dela só apareceu nos últimos 15 anos. Parece que depois que ela se aposentou, abriu a caixinha de seus sentimentos difíceis. Seria interessante um texto seu sobre luto tardio...
Xico querido! Que pertinente e cuidadosa sua escrita. Precisamos falar de perdas, para elaborar esse luto. E cada um viver com sua singularidade e ir se analisando quando esse "sofrer" passa do ponto "normal"dessa dor da perda.
Xico sempre perfeito em seus textos.
Reflexões importante.
Existe uma necessidade enorme para que as pessoas tenham entendimento sobre um processo tão complexo e doloroso.