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O CONTO DE AIA: UMA DISTOPIA CADA VEZ MAIS REAL




A série distópica, inspirada no romance homônimo da canadense Margaret Atwood, publicado pela primeira vez em 1985 e que, em muitos momentos, remete a situações vividas na contemporaneidade, retrata diversas faces de um regime autoritário e atravessado por diversos preconceitos machistas, misóginos, homofóbicos, racistas, dentre outros, além da presença constante da sombra da morte causada, muitas vezes, por pequenas falhas ou grandes atentados contra a gestão do Estado. Em nome de Deus e do Estado, além do poder máximo do homem sobre a mulher, os governantes e a elite cometem diversos atentados aos direitos humanos e ocorrem as barbáries mais vis contra as necessidades mais básicas do ser humano. Atwood pegou elementos que ocorrem em diversas nações do mundo e condensou-as na República de Gilead em sua obra.


A série The Handmaid’s Tale, conhecida como O Conto de Aia, distribuída no Brasil pelos sistemas de streaming Paramount Plus e Globoplay, já ganhou diversos prêmios mundo afora e já possui 5 temporadas disponíveis (a 6a temporada será apresentada originalmente em abril e maio/2025). A série e o livro que a inspirou se passam em um contexto de intensa devastação ambiental, em que as taxas de fertilidade caíram drasticamente em todo o mundo, sobretudo, por causa de fertilizantes. Em determinado momento da série, chega-se a comentar que de cada cinco nascimentos, apenas um deles tem parto bem-sucedido com criança saudável; noutro momento, uma diplomata mexicana relata que em uma grande cidade de seu país, nenhuma criança nasceu saudável nos seis últimos anos.


Os EUA entram em colapso com conflitos internos e guerras civis. A obra é narrada pela personagem Aia Offred, interpretada na série, pela atriz Elizabeth Moss. A história vai sendo desenrolada no presente com flashes do passado que ajudam a explicar o enredo.


A história tem início quando um grande golpe é orquestrado e posto em prática contra Instituições Políticas, Bancárias e Sociais dos Estados Unidos da América (EUA), por um grupo que organiza um novo Estado soberano, a República de Gilead, de modo que 48 dos 50 estados dos EUA, chegam a sucumbir ao golpe. A capital estadunidense passa a ser Anchorage no Alaska que, junto com o Havaí, passam a formar os Estados Unidos da América. A série também deixa evidente que diversas regiões são marcadas por conflitos com rebeldes e apresentam-se como zonas em guerra, como Chicago e Flórida.


A partir daí, as mulheres têm seus direitos cassados, suas finanças bloqueadas, seus filhos e filhas arrancados de seus pais, proibidas de trabalhar e de possuir qualquer patrimônio. Famílias foram destituídas de suas casas e crianças de suas famílias, a sociedade era dividida em castas hierarquizadas e quase todos passaram a servir ao Estado. Consequentemente, também aos denominados Comandantes, como são chamados os líderes dessa república totalitária, teonômica, fundamentalista e militar, como também às suas famílias. As pessoas que foram capturadas ao tentar fugir, foram entregues ao Estado para servirem de acordo com as necessidades do novo Estado.


Gilead encontrou soluções para o problema da fertilidade que ignoram direitos humanos, como a escravização sexual-reprodutiva e o abuso sexual em suas mais diversas formas, culminando em estupros em cerimônias ritualísticas. O aumento da taxa de natalidade, comparada com outros países, servia como respaldo para as atrocidades cometidas e legitimadas pelo Estado.


Homens e mulheres são colocados em trabalhos conforme suas habilidades ou interesses do Estado: podem ser Guardiões ou Olhos - os guardas, a força policial, responsáveis pela Ordem; as Martas - cuja função é cuidar da casa, crianças, serviços domésticos e da família dos Comandantes; as Tias - cuja função principal é treinar, estimular a reprodução e controlar as Aias - estas, são mulheres férteis escolhidas para darem à luz aos filhos dos Comandantes (apesar de todos terem esposas, muitas tem dificuldade para engravidar ou são estéreis), geralmente colocadas na casta por causa de algum erro ou modo de vida no período pré-Gilead ou mesmo um castigo imposto.


Outras castas dessa sociedade hierarquizada seriam os motoristas, as Esposas (dos Comandantes), as Economopessoas (pessoas da maioria da população que trabalham em diversos ofícios, sobretudo para o Estado), as Pérolas (moças jovens que percorrem os países apresentando Gilead), além da atuação de mulheres como Jezebel - mulheres que são forçadas a se prostituírem. A Sociedade, segue, segundo eles, o Antigo Testamento, por isso mesmo, se autodenominam “Filhos de Jacó” e a partir disso montaram todo um arcabouço jurídico amparado na bíblia, e segundo seus interesses e interpretações dessas passagens bíblicas.


As profissões femininas eram altamente reguladas pelo Estado, a violência contra a mulher e o machismo, em sua mais vil face, é destaque na sociedade formada em Gilead. Tudo o que se referia ao mundo feminino foi minimizado ou excluído como revistas com conteúdo, geralmente relacionado ao mundo feminino, como moda, estilo de vida saudável, etc, e indústria cosmética.  As literaturas ditas do mundo feminino (revistas, livros, entre outros) foram destruídas ou então colocadas em bibliotecas ao cuidado das Tias, sendo que mesmo essas não podiam manuseá-las. Alguns Comandantes também as possuem e as utilizam para conquistar a confiança das Aias oferecendo a elas em troca de “algo mais” (aqui exemplificamos como as idas das Aias com os Comandantes para a “Casa de Jezebel”, como ocorreu com a protagonista). As meninas eram matriculadas em escolas para aprenderem a desempenhar as tarefas domésticas, ou seja, eram treinadas para servir ao marido e aos filhos, pois era essa a função da mulher no mundo gileadiano.


As mulheres eram proibidas de ler (exceto as Tias, ao exercerem funções administrativas), sob pena de perderem um dedo como castigo, além de não serem livres, aqui entendendo-se a clausura mais psicológica e não tão física, pois as mulheres - Esposas - podiam se encontrar para conversar, realizar trabalhos manuais em conjunto, passear com os filhos. As inférteis mais rebeldes, divorciadas, feministas e traidoras de gênero (como eram chamadas por Gilead os integrantes LGBTQIAPN+, enquanto os homens desse grupo eram condenados à morte). Elas ainda poderiam ser enviadas para trabalhos forçados nas colônias de resíduos tóxico-radioativos ou para um local chamado Casa de Jezebel, onde os Comandantes e convidados podiam desfrutar dos “prazeres mundanos”, como bebidas, cigarro, sexo livre (sem fins de reprodução), sendo esse espaço mantido pelo Estado de forma velada.


Cada casta usa roupas apropriadas para seus afazeres e com acessórios e cores das roupas bem padronizadas: as Esposas de azul (cor que representa a Virgem Maria com simbolismo de pureza e santidade); as Aias de vermelho (cor da fertilidade, representada pela cor da menstruação); e as Martas se vestem de uma cor transitória em tom pastel entre o azul e o vermelho, deixando claro que são hierarquicamente abaixo das esposas e acima das Aias. Os guardiões vestem verde musgo, as Tias se vestem de marrom (lembrando uniformes nazistas), as Econoesposas usam roupas listradas em 3 cores, deixando claro a classe social e que acumulam diversas funções. Sobre elas, Atwood (2017, p. 35) diz que “essas mulheres não estão divididas segundo as funções a desempenhar. Elas têm que fazer tudo; se puderem”.


Todas as castas recebiam treinamentos de como se portar nas mais diversas situações em que poderiam estar presentes, no caso das Aias, existiam centros de treinamentos chamados de Centros Vermelhos. Gilead tem diversas frases, rituais e orações que devem ser ditos em momentos específicos, como por exemplo, ao serem cumprimentadas por qualquer pessoa com “Bendito seja o fruto”, as Aias deveriam responder “Que o Senhor possa Abrir”, uma clara alusão à reprodução, papel principal dessa casta.


“Só queríamos tornar o mundo um lugar melhor. O melhor nunca é melhor para todos, sempre é pior para alguns”. Este trecho foi dito na obra pelo Comandante Fred Waterford para sua Aia, June Osborn, renomeada pelo Estado como Offred. As Aias são escravas reprodutivas e trocavam de nome e passavam a ser chamadas pelo prefixo Off, seguido do nome do seu comandante ao assumir um novo posto, indicando a inferioridade delas e deixando claro quem passava a ser o seu “proprietário”. Eram mulheres jovens, muitas bem-sucedidas em suas profissões antes do Golpe de Estado, férteis e, claro, que cometeram atitudes imperdoáveis na visão da República de Gilead (como trabalhar fora de casa, ser professora, ter independência financeira, escolher ter ou não filhos ou ser considerada a causa da separação de um casal e/ou casar com o homem recém separado, como o caso da protagonista). Assim, deveriam servir como escravas reprodutivas para aumentar o contingente populacional do Estado. Os estupros com finalidade reprodutiva ocorriam na época da ovulação, que era rigorosamente controlada pelas Tias, principalmente, além de serem submetidas a avaliações médicas e exames rotineiramente.


Cumpre salientar que as Aias não são consideradas mães de seus bebês, pois assim que nascem, são entregues para a Esposa que, com ajuda da Marta, vai cuidar da criança. A Aia fica ainda amamentando a criança por um tempo, e ao encerrar esse período, ela é enviada a outro posto para tentar engravidar de um novo Comandante e cumprir o seu papel reprodutor. Aqui percebemos o quanto o corpo da mulher é visto como objeto, não só do homem (nesse caso) mas de uma Sociedade, que vê nesse corpo, a possibilidade de “oferecer” algo ao Estado, como uma penitência por seus pecados.


Ao falarmos sobre o Estado autoritário de Gilead, é preciso entender que ele também operava de modo a conduzir condutas e produzir verdades. A própria Tia Lídia, interpretada pela atriz Ann Down, deixou claro em alguns momentos na trama, que o que ocorre lá pode não parecer normal, mas com o tempo se tornará normal. É justamente nesse sentido que a República atua, produzindo novas normalidades, conduzindo condutas e produzindo verdades. Esse é um grande problema da sociedade, que pode passar a normalizar a barbárie, sobretudo, proveniente de governos autoritários, como alguns que vemos na atualidade.


Apesar de ter sido escrito a décadas atrás, visto que seu lançamento original data de 1985, O Conto da Aia faz-nos refletir sobre elementos que acontecem atualmente na sociedade, como a eleição no Brasil, de um Presidente da República, machista, misógino, eugenista, racista, homofóbico, xenofóbico e dotado dos mais diversos outros tipos de preconceitos, sendo este um país democrático com uma cultura e história de lutas pela liberdade e preservação dos direitos sociais. Movimentos conservadores, tradicionais e autoritários, muitos dos quais conhecemos como partidos de direita e extrema direita, estão em alta em diversos países do mundo, inclusive, a maior democracia do mundo, como se intitula os Estados Unidos, esteve com seu regime democrático ameaçado por fanáticos estimulados por Donald Trump (ex presidente americano e empresário que, claramente, tem ideais machistas, xenofóbicos, homofóbicos, entre outros preconceitos), após perder as eleições em 2020, inclusive tendo um dos seus símbolos máximos invadido em janeiro de 2021 - o Capitólio. Assim como na obra ficcional estudada, em que a democracia Americana foi deposta, ao redor do mundo, governantes extremistas podem colocar a democracia em risco em suas nações, o já ocorreu em diversos momentos da história mundial e até mesmo com a ditadura militar na jovem democracia que ainda é o Brasil. A nova eleição de Trump e outros governantes da extrema direita pelo mundo, sobretudo na Europa, levam à reflexão e à relação desta obra distópica com a realidade. Apenas para trazer um exemplo, destaco a perseguição e deportação realizada por Trump contra imigrantes.

           

A maioria dos países hoje constituídos, enquanto democráticos e soberanos, possuem uma história marcada pelo derramamento de sangue e processos de opressão até chegar aos dias atuais, mesmo os países ricos e europeus. The Handmaid's Tale vem para mostrar a face cruel de um regime autoritário, demonstrando que apenas uma parte da sociedade é beneficiada, sendo geralmente constituída pela denominada elite. Temas como a biopolítica de Michel Foucault, a necropolítica de Achille Mbembe, a precariedade de Judith Butler e a vida nua de Giorgio Agamben, ajudam a compreender melhor a relação do tema com o mundo e a sociedade. A obra analisada serve como espelho para ajudar a pensar e refletir sobre quais políticos devemos apoiar para o bem de todos com base em seus princípios e atitudes na vida pregressa, para que contextos como estes não ocorram/voltem a ocorrer.


Referência:


ATWOOD, Margaret. O conto de Aia: the handmaid's tale. Rio de Janeiro: Rocco, 2017 (1985). 368 p. Tradução de Ana Deiró.

 

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