Deparei-me dia desses com o termo Hibristofilia, que não conhecia, e fui saber o que significava. Vou utilizar a explicação do Wikipedia, a mais curiosa:
“Hibristofilia é uma parafilia em que a excitação sexual, facilitação e obtenção de orgasmo são sensíveis e dependem de estar com um parceiro conhecido por ter cometido um ultraje ou crime, como estupro, assassinato, ou assalto à mão armada”.
Ou seja, é basicamente um transtorno psíquico semelhante a outros – como pedofilia (por crianças), necrofilia (por cadáveres), e gerontofilia (por anciãos). Tem até a história envolvendo Francisco de Assis Pereira, o “Maníaco do Parque”, que assassinou sete mulheres em um parque de São Paulo. Após a condenação, recebeu centenas de cartas de várias mulheres declarando total paixão por ele. Sendo assim, presumo que é um distúrbio direcionado a criminosos bem conhecidos, que cometeram atrocidades que viraram notícias. Não pretendo falar desses casos, mas propor aqui fazer uma “transfusão conceitual” e pegar o termo emprestado para elaborar aqui que estamos passando por um período de Hibristofilia Social. Como assim?
Recentemente a Netflix lançou o documentário “A Vítima Invisível: O Caso Eliza Samudio”, sobre o assassinato ocorrido em 2010, envolvendo o goleiro Bruno, então ídolo e campeão brasileiro pelo Flamengo, e seus comparsas, crime nacionalmente conhecido. Ele foi condenado a 22 anos de prisão, mas ganhou liberdade condicional poucos anos depois. Tudo isso me fez recordar de algumas situações importantes para eu continuar nesse exercício de reflexão que projeto. Em 2017, Bruno foi contratado pelo Boa Esporte, clube sediado em Varginha, Minas Gerais. Teve uma calorosa recepção, recebeu aplausos da torcida, e tirou selfie com torcedores. Dois anos depois, mesmo tratamento ao assinar com o Poços de Caldas. Passeando por um shopping no Rio de Janeiro, foi aclamado por torcedores do Flamengo. Mais fotos, sorrisos e poses, como vemos na "capa" desse artigo.
Voltar a jogar faz parte do processo de ressocialização, normal. No entanto, há um claro sinal de idolatria e tietagem! O corpo de Eliza Samudio jamais foi encontrado e isso demonstra a brutalidade desse caso. Admirar alguém que premeditou um homicídio a ponto de valorizar sua presença com recordações de afeto através de registros fotográficos é repugnante e um claro sinal do que chamo aqui de Hibristofilia social.
Por outro lado, permanecendo nos gramados, o ex-jogador Richarlyson – hoje comentarista da Globo – sempre sofreu injurias homofóbicas de torcedores de alguns dos times dos quais jogou, como o São Paulo. Em 2017 – mesmo ano que Bruno recebia gentis afagos – ele foi jogar no Guarani de Campinas. Após o anúncio, dois torcedores atiraram bombas no Estádio Brinco de Ouro, sede do clube, e muitos outros torcedores rechaçaram a contratação. Vejam bem a inversão de valores: o criminoso era aclamado e outro era repudiado por uma desconfiança sobre sua sexualidade. Enquanto um condenado por assassinato era recebido com pompa e circunstância, pro outro não teve ti-ti-ti, festa, bolo, nem brigadeiro. Como não observar isso como uma crise moral coletiva?
Vamos pra política. Mais uma vez recorro a 2017 – eita ano da desgraça! – quando milhões de pessoas continuavam nas ruas após o impeachment/golpe, impulsionados por uma renovação política por via eleitoral no pleito presidencial do ano seguinte. Com gritos de guerra contra a corrupção – no auge da Lava Jato que condenava Lula a 9 anos de prisão – todos estavam enraivecidos com o Parlamento e demandavam novos atores políticos. Foram eleitos vários nomes que perfaziam o território ocupado por uma “nova direita”. Entre eles Carla Zambelli.
Esta deputada, entre outras coisas, contratou o hacker condenado, responsável por vazamento de mensagens do Telegram contendo conversas pra lá de suspeitas entre membros condutores da Operação Lava Jato. Pra que? Pra burlar o sistema de Segurança do Conselho Nacional de Justiça, adulterar decretos, e descredibilizar a justiça. Alguém que procura os serviços de um fora da lei para desbravar códigos de segurança de uma instituição do Poder Judiciário é passível de ser rechaçada como uma pessoa sem escrúpulos para conseguir seus objetivos. Pois bem... Zambelli é uma das deputadas mais prestigiadas por essa mesma gente que estava nas ruas reivindicando “ética”. Recebeu quase 1 milhão de votos na última eleição parlamentar! Mesmo que esse caso relatado surgisse após a eleição, alguém duvida que deixariam de votar nela por isso? Zambelli propôs golpe militar em rede social, puxou arma para um jornalista que teria feito uma piadinha sem graça, e continua sendo um bastião do bolsonarismo.
Já o coach/marqueteiro digital Pablo Marçal apareceu no cenário nacional há poucos anos. Recentemente, foi candidato a prefeitura de São Paulo. Procurando saber quem era ele, “puxaram a capivara” do sujeito e descobriram que havia sido condenado em 2010 por furto qualificado, ao compor uma quadrilha que desviava dinheiro de várias contas bancárias. Em pouco tempo, amealhou uma grande fortuna, de modo ainda bem nebuloso (ah, mais isso é o mínimo pra essa gente!) No dia anterior à votação, publicou um laudo falso afirmando que um adversário tinha sido internado por surto psicótico causado por overdose de cocaína! Isso fez com que refletissem sobre sua índole e afastassem qualquer possibilidade de eleição? Ele recebeu mais de 1 milhão e 700 mil votos do eleitor paulistano. Possivelmente, muitos que faziam estardalhaço nas avenidas Brasil afora, clamando valores morais e decência, votaram num condenado!! Isso é Hibristofilia Social ou quer mais??!!! Só falta uma assaltar um banco no interior paulista e o outro mandar matar uma mulher para ambos disputarem - com número recorde de votos- a presidência do país!!
Esse malabarismo argumentativo que fiz associando um frenesi psíquico a uma deformação moral, indica um desajuste de princípios que regem nosso comportamento social em alguns segmentos da sociedade. Vale mais uma inclinação ideológica que a preservação de valores baseados em bom senso. Não vislumbro perspectivas de melhora nesse cenário. A hipocrisia e o cinismo parecem que vão imperar por muito tempo nesse panorama hibristofilo.
FONTE:
Mesmo condenado, goleiro Bruno é tietado por torcedores do Flamengo: ''Me senti acolhido!'' (caras.com.br)
Com bombas no Brinco, Richarlyson se apresenta e diz: "Vão me aplaudir depois" | guarani | ge (globo.com)
Texto fantástico, Carlos. Não conhecia o conceito e achei genial a aplicação dele para o contexto social e político. Este é o momento dos foras da lei. Realmente estamos vivendo essa doença do gozo em relação a violência e a barbárie. Não atoa os "true crimes" e os filmes de horror estão tão em alta. É um horror cotidiano. Fico um pouco chocada em relação ao caso do Bruno, infelizmente é inadmissível que ele tenha alguma mídia e que existam torcedores, principalmente do Flamengo, que compactue com isso. Não importa se era talentoso ou não, o cara é um assassino e pronto, o mesmo para os estupradores Robinho e Daniel Alves. Não tem como passar pano. Também é louváv…