O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 452.
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) foi um escritor itaparicano premiado nacionalmente e dono de diversos romances, crônicas e contos, sendo algumas destas produções adaptadas para a televisão e para o cinema. Escreveu, para além do célebre romance “Viva O Povo Brasileiro do qual falarei adiante, outras obras como ‘A Casa dos Budas Ditosos’, ‘Sorriso do Lagarto’, ‘Sargento Getúlio’, romances que também foram alvos da crítica, e contos irreverentes reunidos em livros como ‘A Arte e Ciência de Roubar Galinha’ e ‘Noites Lebloninas’. João Ubaldo também foi colunista de vários jornais de alcance nacional, a exemplo do ‘O Globo’ e ‘Estadão’, espaços dedicados nos últimos anos da sua produção às suas crônicas.
Após o sucesso de ‘Sargento Getúlio’ publicado em 1974, que lhe rendeu o prêmio Jabuti de ‘Revelação de Autor’, o ilustre escritor itaparicano retorna aos holofotes com a publicação de ‘Viva o Povo Brasileiro’, que começou a ser escrito em 1982 e publicado em 1984, no conturbado contexto político brasileiro marcado pelo fim da Ditadura Militar. Após a sua publicação, “Viva O Povo Brasileiro” recebeu o prêmio Jabuti de “Melhor Romance” e a sua prosa repercute até os nossos dias, levantando discussões diversas sobre a nossa história social e política, a cultura e a identidade nacional.
João Ubaldo narra a história do Brasil entre os séculos XVII e XX, numa espécie de ‘biografia coletiva’ não somente da família dos Ferreira-Dutton, com atenção especial a Patrício Macário (um dos filhos do patriarca da família, Amleto Ferreira), e de outros personagens que se relacionam com essa família, de forma direta ou indiretamente, alguns participando de eventos históricos como a Guerra do Paraguai e a Guerra de Canudos. Personagens símbolo da sobrevivência e da resistência contra o arbítrio da escravidão, contra a violência nas suas mais variadas formas, lutando pela preservação da sua identidade, da sua cultura e do seu conhecimento da vida.
Trata-se de uma epopéia às avessas, uma espécie de história que não se centra em um herói definido, e nem preocupa-se em fazê-lo: é a história de uma coletividade, de um povo marcado pelas contradições da história política brasileira, do período colonial ao republicano, marginalizado, e ao mesmo tempo dono de uma sabedoria particular sobre o mundo, detentor de um conhecimento profundo da realidade concreta. Isso fica evidente ao acompanharmos as histórias de Maria da Fé, de sua mãe Vevé, de Zé Popó, de Júlio Dandão, de Budião, dentre outros personagens que trazem a dimensão de grandiosidade e simplicidade de um povo lutador, aguerrido e insubmisso às tiranias, assim como os itaparicanos valentes que expulsaram os portugueses em 7 de Janeiro de 1823, cuja memória se faz presente na obra.
João Ubaldo Ribeiro não poupa esforços em tratar do mal, da injustiça, da vileza, características presentes em personagens como Perilo Ambrósio, o ‘Barão de Pirapuama’, típico vigarista que prosperou após as guerras de independência em 1823 no mais descarado oportunismo, como Bonifácio Odulfo, irmão de Patrício Macário, típico elitista reacionário que reproduz o discurso anti-povo, recheado de preconceitos e elitismos de toda sorte, e diversos outros em posições privilegiadas do plano econômico, político e social.
Outra característica marcante desse texto, e aqui me faz relembrar certos elementos do realismo fantástico de García Márquez (escritor colombiano dos célebres ‘Cem Anos de Solidão’ e ‘Amor nos Tempos do Cólera’), é a descrição de episódios representativos da sobrevivência da cultura religiosa de matriz africana, como a intervenção de Xangô, Oxóssi e Ogum na Guerra do Paraguai, ou ainda a formação do ‘Poleiros das Almas’, lugar destinado às almas que estariam se preparando para reencarnar. Ubaldo também faz descrições magistrais sobre aspectos culturais, sociais e geográficos da Ilha de Itaparica, destacando tradições e manifestações que despertavam curiosidade aos ‘forasteiros’, como por exemplo a Moqueca de Baiacu, um prato cujo preparo tem de ser muito cuidadoso por se tratar de um peixe tóxico e venenoso.
Não trata-se de uma leitura fácil ou rápida, muito ao contrário: essa epopéia às avessas exige do leitor não só atenção como também parcimônia, não só por questões de vocabulário envolvendo palavras mais antigas da nossa língua mas também pela descrições do ambiente, dos personagens, dos acontecimentos, em um conjunto profundo que retrata a realidade daquele período específico da história. Essa atenção e concentração também são importantes para que o leitor não se perca ao longo da narrativa, que não é exatamente linear do ponto de vista cronológico. Ainda assim, um estilo narrativo que não é enfadonho, ao contrário, ele semeia o desejo de continuar acompanhando o desenrolar da história e de seus atores.
Em tempos como os nossos, trata-se de uma leitura imprescindível e inadiável, necessária para ilustrar a ignorância persistente de parte das nossas elites a respeito da sociedade brasileira, em sua mais multifacetada configuração e contradição, e estimular o retorno, por parte das forças progressistas do país, à investigação da realidade nacional pelos seus próprios termos e não por teorias e ideias que são exógenas e, por vezes, desconexas da nossa realidade social, da nossa formação social, política, econômica e cultural.
E esse último alerta ecoa pelas palavras de Maria da Fé:
“O ódio que vocês têm ao povo terá de manifestar-se em toda a sua crueldade, e, podem crer, o martírio desse povo poderá ser esquecido, poderá não ser entendido, poderá ser soterrado debaixo das mentiras que vocês inventam para proveito próprio, mas esse martírio um dia mostrará que não foi em vão. Terão de matar um por um, destruir casa por casa, não deixar pedra sobre pedra. E mesmo assim não ganharão a guerra. Só o povo brasileiro ganhará a guerra. Viva o Povo Brasileiro!”
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Referência:
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: Formação e Sentido do Brasil. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1997.
RIBEIRO, Ubaldo João. Viva O Povo Brasileiro (edição especial 30 anos). São Paulo, Ed. Alfaguara, 2014.
Eita que bateu uma nostalgia aqui! Tinha vinte e poucos anos quando liba obra que marcou demais minha formação política. O grupo sotero precisa fazer uma viagem a ilha com vc como guia!
Juro a você que quando li,senti a leitura muito densa por conta de muitas palavras rebuscadas,mas livro divertidíssimo,sem dúvida