Tradução: Thiago Pinho
Nessa sociedade não existe um discurso poderoso sobre o amor emergindo nem dos radicais politicamente progressistas nem da esquerda. A ausência de um enfoque sustentado no amor nos círculos progressistas surge de um fracasso coletivo no reconhecimento das necessidades do espírito e de uma ênfase exagerada nas preocupações materiais. Sem amor, nossos esforços para libertarmos a nossa comunidade planetária e a nós mesmos da opressão e da exploração estão condenados. Enquanto nos recusarmos a abordar plenamente o papel do amor nas lutas pela libertação, não seremos capazes de produzir uma cultura transformadora, onde haja um afastamento em massa de uma ética da dominação.
Sem uma ética do amor que molde o rumo da nossa visão política e das nossas aspirações radicais, somos muitas vezes seduzidos, de uma forma ou de outra, a uma fidelidade contínua a sistemas de dominação (imperialismo, sexismo, racismo, classismo). Sempre fiquei intrigada que mulheres e homens que passam a vida inteira trabalhando para resistir e se opor a uma forma de dominação possam estar sistematicamente apoiando outra. Sempre me intrigou o fato de poderosos líderes negros visionários poderem falar e agir apaixonadamente em resistência à dominação racial, mas aceitando e abraçando a dominação sexista das mulheres; ou mesmo mulheres feministas brancas que trabalham diariamente para erradicar o sexismo, mas que têm grandes pontos cegos quando se trata de reconhecer e resistir ao racismo e à supremacia branca do planeta. Examinando criticamente estes pontos cegos, concluo que muitos de nós estamos motivados a si mover contra a dominação apenas quando sentimos o nosso próprio interesse diretamente ameaçado. Muitas vezes, portanto, o desejo não é de uma transformação coletiva da sociedade, do fim da política de dominação, mas simplesmente um fim daquilo que sentimos que está nos prejudicando. É por isso que precisamos desesperadamente de uma ética do amor para intervir no nosso anseio egocêntrico por mudança. Fundamentalmente, se estamos apenas empenhados numa melhoria dessa política de dominação que se refere diretamente à nossa exploração ou opressão individual, não só permanecemos apegados ao status quo como agimos em cumplicidade com ele, alimentando e mantendo esses mesmos sistemas de dominação.
Até que sejamos todos capazes de aceitar a natureza interligada e interdependente dos sistemas de dominação, reconhecendo as formas específicas como cada sistema é mantido, continuaremos a agir de forma a minar a nossa busca individual de liberdade e a nossa luta coletiva de libertação. A capacidade de reconhecer os pontos cegos só pode surgir na medida em que expandimos a nossa preocupação com a política de dominação e a nossa capacidade de nos preocuparmos com a opressão e exploração de outros. Uma ética do amor torna esta expansão possível. O movimento de direitos civis transformou a sociedade nos Estados Unidos porque estava fundamentalmente enraizado numa ética do amor. Nenhum líder enfatizou mais essa ética do que Martin Luther King, jr. Ele teve a visão profética de reconhecer que uma revolução construída sobre qualquer outro alicerce fracassaria. King sempre testemunhou que tinha "decidido amar" porque acreditava profundamente que se estamos "buscando o bem mais elevado", "o encontramos através do amor", porque esta é "a chave que abre a porta para o significado da realidade última". E o objetivo de estar em contato com uma realidade transcendente é que lutamos pela justiça, percebendo que somos sempre mais do que a nossa raça, classe ou sexo. Quando olho para o movimento de direitos civis que era, em muitos aspectos, limitado porque era um esforço reformista, percebo que ele tinha o poder de mover massas de pessoas para agirem no interesse da justiça racial - e porque estava profundamente enraizado numa ética do amor.
O movimento "Black Power" dos anos sessenta se afastou dessa ética do amor. A ênfase agora era mais no poder. E não é surpreendente que o sexismo que sempre minou a luta de libertação negra tenha se intensificado, que uma abordagem misógina sobre as mulheres tenha se tornado central, na medida em que a equação da liberdade com a masculinidade patriarcal se tornou uma norma entre os líderes políticos negros, quase todos eles homens. Na verdade, a nova militância machista do poder negro igualou o amor à fraqueza, anunciando que a expressão quintessencial da liberdade seria a vontade de coagir, praticar violência, aterrorizar, utilizar de fato as armas da dominação. Esta foi a encarnação mais crua da arrojada crença de Malcolm X de que "é necessário agir por qualquer meio necessário".
No lado positivo, o movimento Black Power deslocou o foco da luta de libertação negra da reforma para a revolução. Este foi um importante desenvolvimento político, trazendo consigo uma perspectiva anti-imperialista e global mais forte. No entanto, os preconceitos sexistas e machistas na liderança levaram à repressão da ética do amor. Por isso que o progresso foi feito mesmo quando algo valioso foi perdido. Enquanto King tinha se concentrado em amar nossos inimigos, Malcolm nos chamou de volta para nós mesmos, reconhecendo que cuidar da negritude era nossa responsabilidade central. Embora King falasse sobre a importância do amor do negro consigo mesmo, ele falava mais sobre amar nossos inimigos. Por fim, nem ele nem Malcolm viveram tempo suficiente para integrar plenamente a ética do amor numa visão decolonizadora da política que fornecesse um plano para a erradicação do ódio do negro consigo mesmo.
Ao entrarmos no reino da vida racialmente integrada e americana por causa do sucesso dos direitos civis e do movimento black power, nós negros de repente descobrimos que estávamos lutando com uma intensificação do racismo internalizado. A morte desses importantes líderes (assim como de líderes brancos liberais que eram grandes aliados na luta pela igualdade racial) provocou tremendos sentimentos de desesperança, impotência e desespero. Feridos naquele espaço onde conheceríamos o amor, os negros experimentaram coletivamente uma intensa dor e angústia sobre o nosso futuro. A ausência de espaços públicos onde essa dor pudesse ser articulada, expressa, compartilhada, significava que ela era mantida em um estado de apodrecimento, suprimindo a possibilidade de que essa dor coletiva fosse reconciliada em comunidade, assim como as formas de ir além dela e as formas imaginadas de resistência. Sentindo-se como se "o mundo tivesse realmente chegado ao fim", no sentido de que tinha morrido a esperança de que a justiça racial se tornaria a norma, um desespero que ameaçava a vida tomou conta da vida negra. Nunca saberemos até que ponto o foco do machismo negro na dureza e na brutalidade serviu como uma barreira que impediu o reconhecimento público do enorme sofrimento e dor na vida negra. Em World as Lover; World as Self, Joanna Macy enfatiza em seu capítulo sobre "trabalho desesperado" que
a recusa de sentir tem um pesado custo. Não só há um empobrecimento da nossa vida emocional e sensorial [. . .] mas este entorpecimento psíquico também impede a nossa capacidade de processar e responder à informação. A energia gasta em esconder o desespero é desviada de usos mais criativos, esgotando a resiliência e a imaginação necessárias para novas visões e estratégias.
Para que os negros avancem na luta de libertação, temos de enfrentar o legado desta dor não reconciliada, pois tem sido o terreno fértil para um profundo desespero niilista. Temos de regressar coletivamente a uma visão política radical de mudança social enraizada numa ética de amor, procurando mais uma vez converter grupos de pessoas, negras e não negras.
Uma cultura de dominação é anti-amor. Ela requer violência para se sustentar. Escolher o amor é ir contra os valores predominantes da cultura. Muitas pessoas sentem-se incapazes de amar a si mesmas ou aos outros, porque não sabem o que é o amor. Canções contemporâneas como "What's Love Got To Do With It" de Tina Turner defendem um sistema de troca em torno do desejo, espelhando a economia do capitalismo: a ideia de que o amor é algo importante é ridicularizada. No seu ensaio "Love and Need: Is love a package or a message”? Thomas Merton argumenta que somos ensinados no quadro do capitalismo de consumo competitivo a ver o amor como um negócio: "Este conceito de amor assume que o mecanismo de compra e venda de necessidades é o que faz tudo correr. Ele considera a vida como um mercado e o amor como uma variação da livre iniciativa". Embora muitas pessoas reconheçam e critiquem a comercialização do amor, elas não enxergam alternativa. Sem saber amar ou mesmo o que é o amor, muitas pessoas sentem-se emocionalmente perdidas; outras procuram definições, formas de sustentar uma ética amorosa numa cultura que nega o valor humano e valoriza o materialismo.
As vendas de livros com foco na recuperação, livros que procuram ensinar às pessoas maneiras de melhorar a auto-estima, o amor próprio e a nossa capacidade de ser íntimos nos relacionamentos, afirmam que existe um tipo de falta na consciência pública na vida da maioria das pessoas. O livro de M. Scott Peck, The Road Less Traveled, é enormemente popular porque aborda essa falta.
Peck oferece uma definição funcional para o amor que é útil para aqueles que gostariam de fazer da ética do amor o núcleo de toda interação humana. Ele define o amor como "a vontade de se estender com o propósito de nutrir o seu próprio crescimento espiritual ou o de outro". Comentando sobre as atitudes culturais predominantes sobre o amor, Peck escreve:
Todos em nossa cultura desejam, até certo ponto, ser amorosos, mas muitos não são de fato amorosos. Concluo, portanto, que o desejo de amar não é o próprio amor. O amor é o que o amor faz. O amor é um ato de vontade - tanto uma intenção como uma ação. A vontade também implica uma escolha. Nós não temos que amar. Nós escolhemos amar.
Suas palavras ecoam a declaração de Martin Luther King, "Eu decidi amar", que também enfatiza a escolha. King acreditava que o amor era "a única resposta" para os problemas que esta nação e o planeta inteiro enfrentavam. Partilho essa crença e a convicção de que é na escolha do amor, e começando pelo amor como o fundamento ético da política, que estamos melhor posicionados para transformar a sociedade de forma a valorizar o bem coletivo.
É realmente incrível que Martin Luther King tenha tido a coragem de falar tanto quanto falou sobre o poder transformador do amor em uma cultura onde tal conversa é muitas vezes vista como simplesmente sentimental. Nos círculos políticos progressistas, falar de amor é pedir para ser desconsiderado ou considerado ingênuo. Mas fora desses círculos há muitas pessoas que reconhecem abertamente que são consumidas por sentimentos de ódio a si mesmas, que se sentem inúteis, que querem uma saída. Muitas vezes elas estão muito presas ao desespero paralisante, tornando-as incapazes de participarem de forma eficaz em qualquer movimento de mudança social. No entanto, se os líderes de tais movimentos se recusam a enfrentar a angústia e a dor de suas vidas, nunca serão motivados a considerar a recuperação pessoal e política. Qualquer movimento político que possa efetivamente atender a essas necessidades do espírito no contexto da luta de libertação será bem sucedido.
No passado, a maior parte das pessoas conhecia e atendia as necessidades do espírito no contexto da experiência religiosa. A institucionalização e comercialização da igreja tem destruído o poder da comunidade religiosa de transformar almas, de intervir politicamente. Comentando o sentido coletivo da perda espiritual na sociedade moderna, Cornel West afirma:
Há um empobrecimento generalizado do espírito na sociedade americana, e especialmente entre os negros. Historicamente houve forças e tradições culturais, como a igreja, que mantiveram à distância a frieza de coração e a maldade. No entanto, o empobrecimento do espírito de hoje significa que essa frieza e mesquinhez está se tornando cada vez mais difundida. A igreja manteve essas forças à distância, promovendo um senso de respeito pelos outros, um senso de solidariedade, um senso de significado e valor que daria força para lutar contra o mal.
As comunidades políticas que sustentam a vida podem proporcionar um espaço semelhante para a renovação do espírito. Isso só pode acontecer se abordarmos as necessidades do espírito na teoria e na prática política progressista. Muitas vezes quando eu e Cornel West falamos com grandes grupos de negros sobre o empobrecimento do espírito na vida negra, a falta de amor, ao mesmo tempo que compartilhando que podemos coletivamente nos recuperar no amor, a resposta é intensa. As pessoas querem saber como começar a prática do amor. Para mim, é aí que a educação para a consciência crítica tem que entrar. Quando olho para a minha vida, procurando por um plano que me ajudou no processo de decolonização, de auto-recuperação pessoal e política, sei que foi aprendendo a verdade sobre como os sistemas de dominação funcionam que me ajudou, aprendendo a olhar tanto para dentro como para fora de um jeito crítico. A consciência é central no processo do amor como prática da liberdade. Sempre que aqueles que são membros de grupos explorados e oprimidos ousam interrogar criticamente nossos locais, as identidades e lealdades que informam como vivemos nossas vidas, nós começamos o processo de decolonização. Se descobrirmos em nós o ódio a nós mesmos, a baixa auto-estima, ou o pensamento supremacista branco internalizado e o enfrentarmos, podemos começar o processo de cura. O reconhecimento da verdade da nossa realidade, tanto individual como coletiva, é uma etapa necessária para o crescimento pessoal e político. Esta é geralmente a etapa mais dolorosa do processo de aprender a amar - aquela que muitos de nós recusamos. Uma vez que escolhemos o amor, instintivamente possuímos os recursos interiores para enfrentar esse sofrimento. Passando pela dor para o outro lado, encontramos a alegria, a liberdade de espírito que uma ética amorosa resgata.
Escolhendo o amor também escolhemos viver em comunidade, e isso significa que não temos que mudar por nós mesmos. Podemos contar com a afirmação crítica e o diálogo com os camaradas que trilham um caminho semelhante. O teólogo afro-americano Howard Thurman acreditava que é melhor aprender o amor como ato de liberdade no contexto comunitário. Comentando esse aspecto de seu trabalho no ensaio "Spirituality out on The Deep", Luther Smith nos lembra que Thurman sentiu que os Estados Unidos foram entregues a uma diversidade de grupos de pessoas pela força de vida universal para ser um espaço de construção de uma comunidade. Parafraseando Thurman, ele escreve: "A verdade se torna verdadeira em comunidade". A ordem social anseia por um centro (ou seja, espírito, alma) que lhe dê identidade, poder e propósito. A América, e todas as entidades culturais, estão em busca de uma alma". Trabalhar em comunidade, seja compartilhando um projeto com outra pessoa, seja com um grupo maior, podemos experimentar alegria na luta. Essa alegria precisa ser documentada, pois se nos concentrarmos apenas na dor, nas dificuldades que certamente são reais em qualquer processo de transformação, mostramos apenas um quadro parcial.
Uma ética amorosa enfatiza a importância do serviço ao próximo. Dentro do sistema de valores dos Estados Unidos qualquer tarefa ou trabalho que esteja relacionado com "serviço" é desvalorizado. O serviço fortalece a nossa capacidade de conhecer a compaixão e aprofunda a nossa percepção. Para servir ao outro não posso vê-los como um objeto, devo ver suas subjetividades. Ao compartilhar os ensinamentos dos guerreiros de Shambala, a budista Joanna Macy escreve que precisamos de armas de compaixão e discernimento.
Você tem que ter compaixão porque ela lhe dá o suco, o poder, a paixão para se movimentar. Quando você se abre à dor do mundo você se move, você age. Mas essa arma não é suficiente. Ela pode te queimar, então você precisa do outro - você precisa de uma visão da interdependência radical de todos os fenômenos. Com essa sabedoria você sabe que não é uma batalha entre os bons e os maus, mas que a linha entre o bem e o mal percorre a paisagem de cada coração humano. Com o discernimento da nossa profunda inter-relação, você sabe que as ações empreendidas com intenção pura têm repercussões em toda a teia da vida, além do que você pode medir ou discernir.
Macy compartilha que a compaixão e o discernimento podem "nos sustentar como agentes de uma mudança completa", pois eles são "dons para reivindicarmos agora uma cura do nosso mundo". Em parte, aprendemos a amar, prestando serviço. Esta é novamente uma dimensão do que Peck quer dizer quando fala de nos expandirmos pelo outro.
O movimento de direitos civis tinha o poder de transformar a sociedade porque os indivíduos que lutam sozinhos e em comunidade pela liberdade e justiça queriam que esses dons fossem para todos e não apenas paras os sofredores e os oprimidos.
Líderes negros visionários como Septima Clark, Fannie Lou Hamer, Martin Luther King, Jr., e Howard Thurman advertiram contra o isolacionismo. Eles encorajaram os negros a olhar além de nossas próprias circunstâncias, assumimdo a responsabilidade pelo planeta. Este apelo à comunhão com um mundo além de si mesmo, a tribo, a raça, a nação, foi um convite constante para a expansão e para o crescimento pessoal. Quando as massas de negros começaram a pensar apenas em termos de "nós e eles", internalizando o sistema de valores do patriarcado capitalista supremacista branco, desenvolveram-se os pontos cegos e a capacidade de empatia necessária para a construção comunitária foi diminuída. Para curar nosso corpo político dilacerado, devemos reafirmar nosso compromisso com uma visão do que King se referiu no ensaio "Facing the challenge of a new age” como um compromisso genuíno com "liberdade e justiça para todos". Meu coração se eleva quando leio o ensaio do King; sou lembrada onde a verdadeira libertação nos leva. Ela nos leva para além da resistência e direto para a transformação. King nos diz que "o fim é a reconciliação, o fim é a redenção, o fim é a criação da comunidade amada". No momento em que escolhemos amar, começamos a progredir contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, caminhamos rumo à liberdade, agimos de forma a nos libertarmos e aos outros. Essa ação é o testemunho do amor como ato de liberdade.
Referência da Imagem:
https://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2021/12/15/bell-hooks-escritora-e-ativista-morre-aos-69-anos.ghtml
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