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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

NÃO EXISTE FILOSOFIA AFRICANA OU INDÍGENA



O que é filosofia? Essa é uma pergunta cabeluda, eu sei. Muitos se aventuraram em águas especulativas, numa busca desesperada por terra firme, por alguma clareza. Como qualquer conceito, uma resposta simples nesse território não é apenas difícil de encontrar, talvez seja até impossível. Mas, se você define de forma bem vaga, o que normalmente acontece, como sinônimo de conhecimento (saber ou episteme), então sim, sociedades indígenas e africanas carregam contornos filosóficos. Nesse modelo mais geral, super vago, existem várias formas de saber e múltiplas matrizes epistêmicas no mundo, ou seja, infinitas filosofias em infinitos arranjos culturais. Sem dúvida, um autor contemporâneo conectado a essa definição mais genérica é Boa Ventura de Souza Santos, o filósofo português. Em muitos dos seus textos e palestras ele mistura em uma mesma tigela filosofia e episteme, como se fossem sinônimos imediatos. Em vez de um tipo especifico de saber, de um determinado arranjo epistêmico, “filosofia” se confunde com a própria ideia de conhecimento.


Mas, caso alguém precise de uma definição mais específica, recortada, o que proponho agora nesse ensaio, acaba sendo um pouco problemático o uso de rótulos como “filosofia” ou “filósofo” em sociedades como os Araweté (Brasil), os Iorubá (Nigéria), além de outros agrupamentos humanos ao redor do mundo. Eu defendo, por outro lado, o termo cosmologia como um substituto mais interessante, capaz de rastrear a experiência concreta desses grupos, a maneira como eles falam, comem, rezam... vivem.


 O que é o pensamento filosófico em termos mais específicos? Sem dúvida, continuamos ainda em águas pantanosas, eu sei. Eu também reconheço o risco de respostas relativizantes como “depende” ou “varia”. Elas são ótimas em uma conversa informal numa mesa de bar, quando sua mente embriagada mergulha em especulações alcoólicas, mas elas não sobrevivem muito tempo lá fora, no mundo real, aquele de Dona Maria e Seu José. Na prática, não temos uma definição clara, mas ainda assim é possível definir de uma forma um pouco mais específica, mais consistente.


Desde os diálogos socráticos com seu método maiêutico, o campo filosófico sempre estabeleceu o mundo como um objeto de investigação, um espaço a ser descoberto, dissecado e desconstruído. Sem dúvida, o percurso dessa suspeita, e o produto dessa mesma jornada suspeitosa, depende muito da teoria em jogo, seja ela marxista, pós-estrutural, decolonial, fenomenológica, pragmatista. Apesar da diversidade de conteúdos, a forma é a mesma, ou seja, o princípio epistêmico de fundo permanece intacto: “A realidade não é um dado, mas um campo em constante investigação, um espaço de dúvida, suspeita, debates e contingências”. A origem dessa contingência pode também variar, dependendo das expectativas teóricas lançadas na mesa. No final dessa “hermenêutica da suspeita”, digamos assim, o que me espera? Provavelmente, jogos de linguagem, poder, performances, fluxos, objetos, estruturas, sistemas, rizomas. A resposta de fundo oscila, obviamente, mas a matriz epistêmica que organiza as premissas do debate nunca é questionada


[...] o filosofo sabe que ‘não somos tudo’; mas ele aprende que ele próprio, o filosofo, não habita a totalidade de sua linguagem como um deus secreto e todo-falante; ele descobre que tem, a seu lado, uma linguagem que fala e da qual ele não é dono; uma linguagem que se esforça, que fracassa e se cala e que ele não pode mais mover; uma linguagem que ele próprio falou outrora e que agora está separada dele e gravita em um espaço cada vez mais silencioso (FOUCAULT, 2009. p. 38)

 

Ao seguir essa definição mais específica de filosofia, acolhendo as suas premissas de fundo, faz sentido mesmo aplicar essa “hermenêutica da suspeita” em arranjos cosmológicos como o Iorubá e o Araweté? O mundo aos seus olhos é um objeto de investigação, um campo a ser explorado, debatido? Seus valores carregam traços contingentes e expostos a olhares ácidos? Suas cosmologias são fundamentadas em um “construcionismo social”, “arranjos ideológicos”, “interesses”, “conflitos de campo”, “matrizes históricas”, “pacotes culturais”, “performances”, “debates ontológicos”? É assim que a realidade se manifesta aos seus olhos? De acordo com a nigeriana Oyěwùmí, em seu clássico “A invenção das mulheres”, assim como Viveiros de Castro, com seu “metafísicas canibais”, modelos cosmológicos funcionam dentro de um outro registro.


Em suas palestras sobre tecnologia, Heidegger deixa claro o quanto no ocidente, em especial na modernidade, o mundo é apresentado a cada um de nós como um objeto de inspeção e controle, podendo ser conhecido e modificado. Esse mesmo mundo, portanto, é um grande laboratório contingente, um campo de debates, desconstruções, suspeitas e remodelagens. Mas segundo o próprio filosofo, apesar da importância desse modelo, sua existência não é óbvia, muito menos universal, sendo um simples traço específico dentro de uma ontologia ocidentalizada.


Sem dúvida, é preciso deixar claro algo muito importante nesse ensaio. Embora culturas como Araweté e Iorubá tenham arranjos cosmológicos e não filosóficos, isso não significa que não possam ser interpretadas filosoficamente. É o que chamamos de etnofilosofia, quase toda ela reflexo de pensadores pós ou decoloniais. Ou seja, é possível considerar uma determinada cultura, de preferência por indivíduos que pertencem a ela, mas interpretando a sua cosmologia dentro de bases filosóficas. Como resultado, os etnofilósofos investigam suas origens, seus contornos, seus contrastes com outros arranjos epistêmicos e ontológicos, quase sempre desafiando modelos e especulações ocidentais. Em outras palavras, cosmologias não são filosofias, mas podem ser interpretadas filosoficamente. 


O que muitas vezes chamamos de filosofias africanas são etnofilósofos reinterpretando arranjos cosmológicos em termos filosóficos. Não é surpresa que esses etnofilósofos (pensadores decolonias e pos-coloniais) foram formados em universidades europeias ou de ensino Europeu. Por isso, não é surpresa quando um filosofo africano fala da cultura Iorubá de um modo suave e espontâneo na página 10 e na página 11 mergulha em análises ácidas e pós-estruturais sobre relações de poder no ocidente, assim como suas estruturas, suas pretensões de universalidade e essencialidade. Ou seja, o etnofilósofo, em geral, sai de descrições densas (cosmológicas) e chega em análises filosóficas. A fronteira entre os dois estilos de escrita é muito clara quando textos etnográficos são dissecados. Muitas vezes essa fronteira é super demarcada, quase sempre através de seções no interior de um livro ou artigo. Exemplo: Capítulo 1 - A cerimônia xamânica Cuna; Capítulo 2: Para além dos dualismos entre Corpo e Mente. Quando analisados com calma, esses dois capítulos não só apresentam estilos de escrita distintos, mas suposições epistêmicas e metodológicas também distintas. No primeiro, “conhecer” é experimentar, viver, mergulhando de forma espontânea em práticas ancestrais e muito bem estabelecidas. A suposição epistêmica aqui não é uma suspeita constitutiva, uma busca pelos bastidores e seus traços desprezíveis e humanoides (linguagem, poder, ideologia), mas um acolhimento do que é dito e feito. No segundo capítulo, ao contrário, “conhecer” é investigar, buscando traços contingentes, contraditórios, problemáticos, sombras ocultas nas entranhas do dito e do feito. No primeiro capítulo a experiência é o centro, no segundo ela é só um pretexto, apenas um obstáculo na descoberta de causas “legítimas”, “reais”, como estruturas, sistemas, jogos de poder e linguagem, ideologia, performances. Em outras palavras, o primeiro capítulo é cosmológico, já o segundo filosófico. PS: Sem dúvida, esses dois modelos podem se misturar em um simples capítulo. Eu separei cada um apenas como um truque pedagógico, o que weberianos chamam de “tipo ideal”.


Depois de algumas viagens especulativas ao longo dessas páginas, é evidente os diálogos, muitas vezes necessários, entre arranjos cosmológicos e filosóficos, mas uma pergunta ainda permanece: por que queremos tanto estampar o adesivo “filosofia” nos portões de sociedades indígenas e africanas? Existem algumas respostas possíveis:


1) Nós depositamos no substantivo “filosofia” um valor gigantesco, como se fosse um troféu, um mérito. “Filósofo” é quase sinônimo de inteligência, praticamente um adjetivo. Logo, diante da valorização dessa palavra, e diante de um mundo cada vez mais inclusivo nas democracias liberais, não faz sentido manter esse “tesouro” apenas no território europeu. Ok... eu entendo esse esforço de democratizar algo considerado por nós valioso. Faz sentido, certo? Mas esse gesto amigável, democrático, pressupõe algumas premissas, e uma delas é a defesa da filosofia como um modelo universalizante e nobre. Por que “filosofar”, pensado aqui como a percepção da realidade enquanto um objeto a ser dissecado, investigado, debatido, numa busca alucinada por coisas por trás... por que isso seria uma virtude? Por que outros arranjos de mundo precisam ser medidos por essa régua?


2) Somos teóricos progressistas, por isso valores como crítica, além da resistência a instituições, normas e expectativas, ganham um tom mais nobre do que modelos “conservadores” de comportamento, como o respeito à tradição, regras e instituições. Dizer que cosmologias são arranjos epistêmicos mais sólidos e raramente expostos a suspeitas e debates, parece uma ofensa aos nossos ouvidos liberais e ocidentalizados. Pense bem... se eu descrevo a você dois amigos meus: a) Joãozinho religioso e seguidor fiel de sua igreja e b) Joãozinho crítico, militante e aberto a questionamentos e suspeitas; pergunta... quem é o modelo de ser humano aqui, qual dos dois melhor descreve as verdadeiras virtudes de uma pessoa? Seja sincero... não parece que o primeiro é alienado, apenas um fantoche nas mãos de forças que o ultrapassa? “Onde está o empoderamento do indivíduo diante das instituições, sua capacidade de desconstruir, modelar e debater, afirmando seus desejos, escolhas e experiências?”, pergunta o sujeito liberal.


3) Como já foi dito antes, existe também um motivo mais básico, semântico. Como a filosofia é entendida como sinônimo de conhecimento em geral, obviamente todas as sociedades tem arranjos filosóficos, da mesma forma que falam da filosofia do padeiro, do florista, ou até a filosofia das flores. É possível expandir tanto o conceito que ele perde qualquer utilidade metodológica, teórica ou até política.


Resumindo... arranjos cosmológicos não são filosóficos e nem precisam ser, embora diálogos sejam possíveis, como tentei deixar claro ao longo dessas páginas. Não existe qualquer demérito ou insulto nesse cenário, muito menos problema em um mundo governado por espíritos, deuses, tradições, ancestralidade e um conjunto de regras bem sólidas. A hermenêutica da suspeita, e o tom muitas vezes cínico do ocidente sobre qualquer coisa mística, religiosa, verdadeira, essencialista, neutra ou universal, não deve ser a regra absoluta quando o assunto é o reconhecimento antropológico de culturas. Eles não são como nós, nem precisam ser. Nosso progressismo, assim como nosso pacotinho de valores democráticos liberais, não são a medida de todas as coisas, ao contrário do que nosso mentor intelectual, Fukuyama, gostaria de sugerir.

 

 

Referência:

FOUCAULT, Michael. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de janeiro: forense universitária, 2009.

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Olá Thiago. Conforme solicitado por email, venho expor minha percepção sobre o seu texto, com o objetivo de contribuir para este debate. Vamos por partes. 1. "Boa Ventura de Souza Santos" é colocado como filósofo, porém ele é formado em Direito, com doutorado em Sociologia e sua vida profissional ocorreu na Sociologia. Não na filosofia. E não me lembro de ninguém que o tenha reconhecido como "filósofo". Isso claro, é só pra esclarecer a posição dele dentro do tema. Mas também explica a confusão que ele faz entre "filosofia" e "conhecimento" - que, concordo, ele apresenta de modo confuso, tal como em "Um Discurso sobre as Ciências" de 1988. Este autor tem suas contribuições, mas, certamente, ele não contribui na busca…

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Matheus, muito obrigado por seus comentários. Com certeza, eu vou levar em conta quando transformar esse ensaio em Artigo. Agradeço muito pela ajuda

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Você está correto,Thiago. São cosmologias o que deve ser definido em termos de modos e vivências dos chamados povos tradicionais. É isso mesmo.

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Valeu, Carlos. O desafio é reconhecer esses grupos como eles são, ao invés do que a gente espera deles. Esses grupos não existem só como um exemplo ou argumento em nossas palestras, conversas de bar e aulas.

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