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Foto do escritorThiago Araujo Pinho

NIMONA: O FILME LGBTQIAP+ QUE AGRADOU ATÉ BOLSONARISTAS





Nimona é a despedida da Blue Sky, o seu último projeto enquanto empresa de animação. O filme passou por vários altos e baixos, incluindo aqui o arquivamento pela Disney, atual dona da antiga Blue Sky. Apesar de rejeitada por muitos, a Netflix trouxe Nimona de volta à vida e a lançou em sua plataforma. A trama gira em torno da história de um cavaleiro (à propósito... abertamente gay) e sua parceira metamorfa (Nimona) através de várias aventuras em busca da redenção. O filme é bem-humorado, com ótimos gráficos no estilo de "Gatos de Botas 2" e "Homem Aranha no aranhaverso", além de um enredo cheio de criatividade, apesar da vilã ser um pouquinho previsível. Como eu achei o filme excelente, ao mesmo tempo que surpreso pela ousadia dos produtores, eu fui conferir na Rotten Tomatoes e em outros sites de avaliação cinematográfica como as pessoas receberam Nimona. Eu imaginava que eu encontraria pelo caminhos notas baixíssimas, comentários agressivos com pitadas homofóbicas e misóginas, tudo isso em razão de algum tipo de cancelamento ou outra forma de boicote. Mas não foi o que encontrei. Na Rotten Tomatoes Nimona recebeu 93% dos críticos e do público, um tipo de convergência rara quando o assunto é animação (em geral, críticos amam e o público odeia ou o público odeia, mas os críticos amam).


Depois de perceber as excelentes avaliações pelos quatro cantos da internet, e depois de algum tempo pensando sobre o assunto, uma certa pergunta brotou da minha cabeça: Por que os temas LGBTQIAP+ de Nimona não causaram polêmica, já que eles eram tão explícitos, muito além de simples metáforas como a Disney gosta de fazer? Em 1h 40m de filme temos em um só pacote beijo gay, várias declarações de amor entre o personagem principal e seu parceiro, cenas de carinho entre eles e muito mais. Se o problema dos críticos de outros filmes parecidos era a lgbtfobia, se a causa das avaliações ruins era nada mais do que um traço de preconceito, por que Nimona recebeu tantos aplausos do público e da crítica mais especializada? A hipótese desse ensaio se afasta um pouco dessa tese mais ortodoxa (o preconceito como critério explicativo), embora reconheça que existam sim casos de racismo ou lgbtfobia no meio da experiência estética de uma obra.


O principal problema de outros filmes criticados não era exatamente a existência de pautas LGBTQIAP+, ou outros elementos identitários, mas sim um mau uso dessas mesmas pautas. Quando usadas com criatividade e profissionalismo, a maioria tende a gostar, da mesma forma que The Sandman (série cheia de temas identitários) foi bem sucedida em todos os sentidos. O filme “Homem Aranha no Aranhaverso”, assim como o próprio jogo do “Homem Aranha: Miles Morales”, do Ps4 e Ps5, por exemplo, protagonizaram um personagem negro (Miles Morales), assim como um elenco repleto de pessoas negras. Ambos foram um sucesso absoluto, agradando Gregos, Troianos e até Sulistas. Como interpretar todo esse contraste, toda essa circunstância incomum?


A série “Game of Thrones: A casa do dragão”, estreando uma mulher empoderada como protagonista, foi também um sucesso completo, mas “O Senhor dos Anéis: Os Anéis do Poder”, também protagonizada por uma mulher poderosa, sofreu cancelamentos e vários outros tipos de boicote. Mas por que? Por que algumas séries, filmes e jogos com temas identitários são vistos como lacração, enquanto outros, com as mesmas temáticas, passam por tanto boicote? Se o problema fosse um caso de preconceito, todas as produções com temas identitários não deveriam ser odiadas? Todo filme com o menor traço de progressismo não seria também boicotado? Eu tenho uma hipótese aqui comigo e convido você a avaliar sua consistência interna.


Seguindo produções como “Nimona”, “The Sandman”, “Homem Aranha no Aranhaverso”, além de obras mais cults como “Parasita”, “Corra”, “Infiltrados na Klan”, é possível extrair algumas dicas sobre como usar pautas progressistas no cinema de forma eficaz:


1) Nessas histórias, com um destaque a Nimona, personagens não são representações abstratas de grupos (o GAY, o NEGRO, a MULHER, o POBRE), mas personagens complexos com trajetórias reais. Da mesma forma, a pauta identitária é integrada com naturalidade na trama, nem sequer sendo debatida ou estranhada pelos personagens. Esse gesto torna a história muito mais eficaz em sua mensagem política.


2) Não trate seu público como idiotas que precisam de uma palestra sobre temas sociais. Evite insultar a inteligência da plateia ou até sua moralidade. Lembre-se: eles sabem que preconceito é ruim e sabem também o quanto ele é prejudicial. Repetir tudo isso constantemente de forma explícita, como se fosse algum episódio de algum canal educativo, pode soar arrogante, raso e ineficaz.


3) Valorize o universo estético da obra, concentrando as energias na construção de uma boa narrativa. Ou seja, a política não pode ser a matriz que organiza a trama, mas um ingrediente potencializador da estética do material. Elementos como direção, fotografia, figurino, performance, trilha sonora, e muitos outros, não podem ser subestimados, já que representam a alma de qualquer filme. O conteúdo pode ser importante, mas a forma é muito mais, ou seja, a pergunta sobre como vamos afetar o público é de extrema relevância, independente da mensagem embutida.


4) Use a pauta política de um jeito sutil, integrada na própria substância da trama, ao invés de um elemento forçado, como a Disney normalmente faz em seus filmes. O seu personagem não precisa deixar claro que ele é negro e cheio de empoderamento: apenas crie um personagem negro que age de forma empoderada. Não fale, apenas faça. A mensagem do empoderamento vai se dissolver na própria amarra da trama, sem com isso prejudicar os contornos da narrativa.


5) Não faça do conflito central uma pauta identitária, caso contrário você vai excluir boa parte do público que não vive as experiências em torno dessas pautas. Torne o centro do conflito algo de mais universal, mais facilmente compartilhável, um conflito reconhecido por qualquer um, ao mesmo tempo em que a pauta identitária aparece nos bastidores.


6) Seu personagem não pode ser perfeito, o clássico perfil "Mary Sue" no cinema, apenas enfrentando desafios e obstáculos externos (sociedade, preconceito, etc). É preciso que o personagem tenha falhas próprias, obstáculos internos que fazem parte dele, além de uma trajetória de crescimento psicológico.


7) O principal conflito da trama não pode ser simplificado de uma forma dualista (bem x mal), já que essa matriz de narrativa é previsível e exaustivamente usada por aí. Faça com que as decisões tenham mais gravidade, decisões que não são tão simples de serem feitas, já que os custos sempre existem. Deixe o público apreensível, muitas vezes até confuso sobre qual a melhor alternativa a ser tomada.


Com essas dicas a história vai manter o seu tom progressista e, ao mesmo tempo, afetar indivíduos que muitas vezes não se identificariam com o progressismo. Se a gente continua a produzir filmes identitários no estilo de “Malhação”, de forma muito grosseira, explicita, sem criatividade e completamente “pedagógica”, no modelo da TV Escola, vamos apenas andar em círculo, apenas afetando aqueles que já concordam com nossas ideias. Mas esse não é o objetivo, certo? O objetivo não é só agradar velhos clientes, mas atrair cada vez mais um novo público, expandido nosso “negócio progressista”. Se esse é o propósito, então precisamos de Nimona como um farol, um lembrete de como fazer um cinema realmente eficaz.



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