NEM TANTO AO MAR, NEM TANTO A TERRA OU AS VANTAGENS DE SER PENINSULAR.
- Nadia Virginia
- 17 de abr. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 19 de abr. de 2024

Cresci numa pequena extensão de terra banhada pelo mar, afortunadamente emoldurada pelo sol nascente e poente. Esse pedaço de terra que avançava para o mar, se estendia e se espraiava por pouco mais de um quilómetro em torno de nossas vidas cotidianas afetadas por aquela enseada que, sem o saber, respirava conforme o ciclo das marés, como peixes imersos em um oceano que os constitui, sem que se deem conta, como seres marítimos.
A cidade do Salvador, desde a sua fundação, foi se conformando para o lado de dentro e, ao mesmo tempo, se expandindo para fora da Baía de Todos os Santos. A primeira entrada de mar que fundou sua origem, foi sendo deixada, como quem procura um ‘norte’ para se perder mar aberto e a fora.
No começo dos anos de 1970, quando passamos a morar na Ribeira, ponta da Península de Itapagipe, eu era jovem demais, uma criança, mas aquela quase ilha ligada por um fio ao continente tinha o tamanho exato de um pequeno e seguro mundo que eu precisava.
Ocorre que eu ainda não tinha noção do acidente geográfico que configurava minha paisagem cotidiana. Com o passar do tempo, um movimento recorrente em espiral, sentido horário, voltando-se e voltando-se diversas vezes, cada vez, no entanto, sempre mais para dentro, me fez enxergar mais, ver uma península dentro de outra península, dentro de outra…
Anos mais tarde, compreendi que crescer, tornar-me adulta significava percorrer a espiral no sentido anti-horário, ter coragem de seguir esticando o braço para fora daquele abraço de mar contra a costa, protegido de quase tudo. Na verdade, o desafio era compreender o sentido de mão dupla daquele desenho de península: o frágil equilíbrio ente, de um lado, um desejo de ilha, emancipada, autorizada a ser e existir com autonomia; e, de outro, pedaço de terra pavimentando o caminho até o abraço do continente, como uma mão estendida segurando-se a ele.
Paradoxalmente, só podemos vê bem, ver mais, tomando distância e, ao mesmo tempo, mergulhando no centro da coisa. Naquela época da infância, tudo se resumia a explorar o nosso território, não era o tempo de saber mais sobre ele. Era bom, era feliz estar morando, caminhando, fazendo amigos, estudando pertinho de casa, vivendo em família, passeando de bicicleta no meio da tarde, sentando-se na varanda para ver a lua enorme crescer sobre o mar no primeiro dia da Lua Cheia, ou seguir o sol e seu movimento desde a aurora até o ocaso. Eu conhecia bem o sol. Eu podia ver pela janela, o seguir pelo céu, à pé ou de bicicleta.
Ah, era possível desenhar um mapa completo daquele território único, mas nunca o fiz. Não era ainda o tempo de compreender, era o tempo de viver.
Hoje, talvez somente seja possível esboçar um mapa de calor, apontando os lugares que tiveram um significado particular e intenso para mim. Não fiz ainda…
Todas essas memórias vieram à tona por associação, por conta de uma fala do escritor Amós Oz*, que em sua passagem pelo Brasil, esteve em São Paulo como convidado do evento Fronteiras do Pensamento. Uma pergunta do público lembrava que em sua obra “A Caixa-preta”, uma personagem dizia que "Toda pessoa é um planeta". O autor então, respondeu assim:
Eu posso dizer a vocês que o livro A caixa preta é uma troca de cartas e mensagens entre os personagens. O autor só fala através dos personagens. Mas eu, diferente de John Donne, que sempre afirmou que nenhum homem é uma ilha, e diferente de muitas tradições darwinísticas que alegam que cada homem é um planeta em guerra com outros, eu acredito que cada um de nós é uma península, meia ilha. Eu acho que é certo para nós sempre permanecer uma península: metade ligada ao continente, que seria família, sociedade, comunidade, religião, país e herança. Mas a outra metade de nós deveria ficar isolada, sozinha, enfrentando os elementos que são o mar, as montanhas, a solidão, a morte, a ambição, os desejos. (…)
Na condição de península, estamos, de algum modo, ligados. Quando nos sentimos uma ilha solitária, as outras ilhas, ou seja, os outros seres humanos ilha pode viver em disputa, em guerra com as ilhas em torno. Eis a razão para Ninguém ser uma ilha, muito menos um planeta separado. Para Amós Oz, cada um de nós deveria preferir permanecer uma península. E completa:
Para mim, pelo menos, a condição humana é ser uma península, e não uma ilha. É a minha fórmula para a vida familiar, para parcerias, amizades, e é a minha fórmula para Israel e Palestina.
Concordo com o autor de A caixa-preta, obra que conheci bem jovem, quando ainda morava do lado dentro da Península de Itapagipe, na Enseada dos Tainheiros (vem de tainha, peixe miúdo muito comum na nossa costa). Eu já era parte ilha, parte continente, sem o saber.
Recordo-me que quando morei em São Paulo capital, por quase quatro anos, para realizar o doutorado, pude medir a influência que a presença do mar bem diante de mim por toda uma vida me causou. A percepção do mundo, a herança sensorial de enxergar o mundo tendo o mar como horizonte último. Passei a sofrer de ilusões de ótica, enxergando, atrás ou além da paisagem urbana da cidade de São Paulo, cuja predominância é o concreto e a presença de pequenos e grandes recortes de verde. Em algumas ocasiões, tive que viajar até o litoral paulista para apaziguar a falta que o mar fazia a mim.
Ser peninsular, é um conceito e um modo de estar no mundo e, abarca outras dimensões da existência, tais como as questões morais e éticas, a compreensão da nossa enorme diversidade, interdependência e transversalidade de nossa ação no mundo.
Se sou (me entendo como) uma ilha, bastando-me, não enxergo, nem reconheço que minhas ações e inações precisam levar em consideração os outros seres humanos, que como eu, agem e são afetados mutuamente. Um exemplo desse estado, modo de ser ilha é a tendência mundial de morar fechando-se num condomínio “à prova de invasões”.
O tempo e a experiência, no entanto, têm mostrado que não é assim que se consegue proteção contra a violência. Ela, a violência, em todas as suas modalidades, vem morar nesses supostos espaços de vigilância, uma vez que, a própria existência desses “nichos à salvo” (de que?) é um ato de extrema violência contra o direito a uma cidadania democrática e segura para todos.
Construir e cultivar relações saudáveis de vizinhança em todos os territórios das cidades, em todos os bairros e ruas, sem hostilidades, sem disputas, é o caminho e o desafio para o qual somos chamados todos os dias, sobretudo ultimamente, quando milícias e facções criminosas, motivadas em ocupar (a seu modo) o espaço deixado pela ausência do estado nas comunidades, disputam e desafiam o poder público ocupando esses territórios para transformá-los, à força, em suas ilhas.
E nós, o que faremos? Não sei responder…. Só sei que seguirei sendo peninsular.
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