Em uma entrevista nos anos 90, Madonna ouve o entrevistador afirmar que teria ficado assustado com as fotos do seu polêmico livro “Sex”. Ele aponta especialmente uma foto que retrata a cantora completamente nua em cima de um espelho, se masturbando. O homem afirma que achou horrível e não sabe explicar o motivo para tal. Madonna, com toda sua sagacidade, afirma que a reação das pessoas sobre suas fotos fala mais sobre elas do que quem está na foto. Com isso, ela o questiona: "Você tem medo de uma mulher que consegue se excitar sozinha?” O homem confirma que sim, mas não sabe o porquê.
Minha proposta é responder a ele, ao seu incômodo em ver uma mulher livre, detentora de seu prazer. A questão é que o lugar do gênero feminino no constructo social é associado ao que, a quem ela se relaciona. Os espaços de validação da presença feminina são permeados mais pelo conjunto social do que a potência única do indivíduo. Enfim, somos feitas para viver através de intermediários. Sem eles, seríamos desprovidas dos prazeres da vida e da realização.
É uma ideia baseada na prerrogativa que mulheres não sustentam seus próprios desejos. Elas não seriam capazes de dar a si mesmas tudo o que necessitam, como autossuficiência emocional e psíquica. Além disso, sua habilidade de sentir prazer seria dependente dos espaços designados como áreas de pertencimento da persona feminina. Dois deles, destacam-se mais: o casamento e a maternidade.
A mulher voltada para si, e não para o outro seria monstruosa (Soihet, 1989). Nesse ideal, a mulher passa a existir somente em relação ao outro, filhos e marido (Basaglia, 1983; Badinter, 1985) (p.142)[1]
Existem fatos que corroboram isso. Na história da psiquiatria, o discurso médico já utilizou a maternidade como forma de aliviar as tensões da vida da mulher, dando a estimativa que o útero teria controle sobre os ânimos femininos.
[médicos] ...afirmavam que o útero tinha vontade própria e um desejo inacreditável de conceber. Assim, interpretavam as doenças femininas como males essencialmente uterinos, os quais a maternidade poderia acalmar: “Tota mulier in utero” (Toda mulher no útero). (p.135)[2]
No casamento, a configuração de solidez matrimonial, baseada na fidelidade - apenas do lado da mulher, aponta que estar fora desse âmbito geraria uma situação de fracasso da figura feminina. Para ela, é necessário empenhar esforços na sua aparência, comportamento e temperamento para que o equilíbrio do casal seja mantido.
[sofrem violência]...através da autoridade dos seus maridos, que delas esperavam um comportamento dócil e obediente, em um processo que garantisse o silêncio e a completa passividade. (p.259)[3]
Quando eu era pequena, havia uma enciclopédia chamada “A Enciclopédia da Mulher”. Acho que eram cinco livros, com muitas informações detalhadas, que ensinavam sobre o comportamento feminino, em alguns momentos, com classificações: mulher jovem, mulher solteira, mulher casada, mulher com filhos. Para cada fase, eram descritas minúcias da vida feminina a respeito do cuidado ao corpo, à casa, à família e aos filhos. Algumas delas me chamavam atenção. Por exemplo, uma parte sobre como a mulher deve fumar de maneira mais elegante; ou um livro dedicado somente para receitas, com dicas de drinks que poderiam combinar com os alimentos; ou o trecho que trazia várias listas de como fazer um enxoval de casamento.
A existência dessa obra deixa claro como somos seres socializados a “saber agir” para o outro, especialmente, nas áreas casamento e maternidade/família. São tantas informações, que um livro só não seria suficiente. Apenas uma coleção daria conta de tudo o que socialmente precisa ser ensinado às mulheres sobre como se comportar nos núcleos que elas têm permissão de atuar, e com apenas um papel: servir. Será que algum dia existiu uma enciclopédia sobre como ser homem?...
A ideia dessa discussão nasceu em mim quando eu entendi o quanto estava condicionada a viver para os outros. Minha cabeça vivia ocupada pelos espaços do casamento/relacionamentos e a maternidade. Eu estava morrendo de fome de mim. Morria de saudades de uma Carla que eu nem conhecia, alguém que não precisava de pontes, meios para acessar a si mesma. Depois que dei esse passo, encontrei um espaço de embate e alívio conjuntos. A luta, no reajuste mental e discursivo meu - e dos outros - sobre meu lugar no mundo. E o alívio, proveniente do resgate da minha identidade, da minha integridade humana.
Essa perspectiva é muito semelhante ao que afirma Betty Friedan em seu livro “The feminine mystique”, um estudo sobre várias mulheres da classe média americana nos anos 60 que compartilhavam de um mesmo mal-estar, posteriormente designado como “o problema sem nome”. Ele seria o resultado da inadaptabilidade delas em se ajustar à "mística feminina” que se proliferava culturalmente, com grande divulgação feita pela mídia.
[a autora] Defendeu ainda que o “problema” era relativo à questão de identidade, pois as mulheres não se entendiam como sujeitos para além da sua anatomia. Ou seja, seguiam os padrões de “feminilidade” elaborados e impostos pela “mística”, sem reconhecerem seus anseios individuais divergentes a ela. (p. 7)[4]
Espero que as observações trazidas ajude a refletir o quanto a trajetória de vida das mulheres ainda não encontrou espaços de respeito e reconhecimento da sua autonomia em experimentar o prazer em si mesma e nos seus desejos. Para finalizar, quero lembrar que iniciei essa reflexão com uma cantora, a talentosa Madonna. Agora, finalizo meus pensamentos com o trecho da música “King”, da impressionante vocalista Florence Welch, líder da banda Florence and the Machine, onde ela diz:
I am no mother
I am no bride
I am King
Em livre tradução:
Não sou mãe
Nem noiva
Sou um REI
Rei da minha vida, do meu caminho, da minha existência - e sem intermediários.
[1] ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020. [2] ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020. [3] BRAGA, Adriana et al. Maternidade nas mídias. 2021. [4] BORGES, Joana Vieira. Da (des) construção do “clássico”: o Segundo sexo e a Mística feminina no Brasil e na Argentina. FAZENDO GêNERO, v. 10, p. 1-13, 2013.
Imagem de capa: <https://claudia.abril.com.br/wp-content/uploads/2019/09/cl696-sexo-revoluccca7acc83o-sexual-1.jpg>
Excelente Carla. Expôs tudo que penso. Milagrosamente enquanto criança vivi livre dessas influências tão invasivas da mídia e das revistas que determinavam o comportamento da mulher. Infelizmente muitas de nós sofre e indiretamente todas nós sofremos com essa pressão social. Gritemos liberdade! Merecemos ser autenticamente felizes.