Ei... você viu o que aconteceu essa semana? Não estou falando do crocodilo encontrado em uma casa no litoral de São Paulo. A notícia agora foi outra, uma verdadeira bomba, pura polêmica. O ex-ministro dos direitos humanos e da cidadania, o acadêmico e ativista Silvio Almeida, foi cercado por acusações sérias, de grande porte, envolvendo o assédio de muitas mulheres, como a ministra Anielle Franco. Vários amigos desabaram em lágrimas diante do escândalo, numa mistura de frustração e surpresa, como se fosse um tipo de luto político. Mas, sendo muito sincero com você, eu preciso confessar... nada disso me surpreendeu. Quando o assunto é a esquerda identitária, casos assim são constantes, variando apenas de acordo com o nível e a reputação do alvo. Apesar de boas intenções, e nunca duvidei disso, o destino dos identitários sempre foi o fracasso, nada mais do que grupos devorando a si mesmos em um gesto de canibalismo político. Não acredita? Então, me acompanhe...
Antes de qualquer mergulho mais profundo, é preciso deixar claro um detalhe muito importante, caso contrário posso ser mal-interpretado. Identitarismo não significa, de forma nenhuma, pautas identitárias, como gênero, raça e milhões de outras espalhadas por aí. Esses temas fazem parte de circuitos complexos e relevantes de pesquisa, debates e publicações. O identitário, também chamado por mim de esquerda liberal, ao menos na minha definição, é qualquer indivíduo que instrumentaliza pesquisas científicas complexas por razões psicológicas, mercadológicas ou políticas, em geral moralizando o campo de debates. Pense no identitário como um tipo de coach, uma figura que parasita espaços científicos, quase sempre dentro das humanidades. Essa prática é muito comum entre liberais, sejam eles de direita ou de esquerda, na maior parte das vezes acompanhada por um gesto de moralização de temas complexos. Por exemplo, o identitarismo reduz dimensões estruturais a simples problemas de caráter. Quando você observa alguém falando frases como “branco é escroto”, “homem não presta”, “burguês não gosta de pobre”, pode ter certeza de uma coisa: esse indivíduo não representa as ciências sociais, muito menos estudos na área. Quando um marxista fala de um burguês, a análise não se estende ao caráter da criatura, mas aos circuitos estruturais em jogo (na verdade, a moralização do debate, segundo Marx, era restrita ao socialismo utópico, grupo que sempre criticou). Da mesma forma, quando uma feminista negra como Patricia Collins menciona o conceito de privilegio branco, ela não tem em mente o caso da dondoquinha pálida que jogou suco na cara do entregador de Ifood negro. Esse tipo de “Pornô moral” que circula por nossos feeds de noticia, pode ser divertido, pode ser até lucrativo, mas apenas gera problemas a longo prazo . O privilegio branco é um critério estruturante, nunca moral. Depois desses esclarecimentos iniciais, vamos lá...
Durante muitas décadas, com o marxismo, a fronteira entre dominante e dominado era muito clara, objetiva, quase impossível de relativizar. Como consequência, a arena política também manifestava contornos sólidos, muitas vezes até naturais, na fronteira do óbvio. Existiam, de um lado, os donos do meio de produção, seres capitalistas e influentes em cada centímetro do mundo e, do outro, os proletários, criaturas sem nada disponível, a não ser suas próprias mãos, pernas e troncos, ou seja, seus corpos vendidos em troca de alguma migalha no fim do mês. Esse campo estrutural, definido pelo marxismo, não tem nada de epistêmico, mas ontológico, ou seja, é uma característica objetiva na própria substância da realidade, ao invés de uma simples categoria hermenêutica e flexível. Em outras palavras, “dominante” e “dominado” raramente oscilam. Não importa se você ganha um salário mínimo, 7 ou 10, nem mesmo importa se você costuma viajar até a Disney ou até Feira de Santana, a pergunta objetiva continua: “você é ou não é o dono dos meios de produção?”
Depois da chegada da nova esquerda na década de 60, com seus infinitos movimentos identitários, o circuito acadêmico e político ficou bem mais nebuloso, relativo. Com a influência de teóricos pós-estruturalistas (ainda super famosos nos corredores das humanidades), não existe mais dominante ou dominado como critérios objetivos, mas uma esteira infinita de manobras interpretativas. Sem dúvida, essa expansão de categorias, essa espécie de giro hermenêutico, foi muito importante, ampliando o marxismo e seus próprios limites, além de incluir debates e corpos durante muito tempo esquecidos ou até ignorados. Mas tudo tem um preço, um custo embutido, principalmente quando banalizam debates complexos em circuitos mais "pragmáticos" (redes sociais, propaganda, partido político). Com a demissão de Marx da liderança progressista e a chegada de Foucault[1] como seu substituto mais imediato, ao menos nas democracias liberais, as coisas saíram um pouco do controle. Tudo agora depende do sistema identitário onde você circula, o que torna o conceito de “poder” algo relacional, ou interseccional, se preferir. Em outras palavras, você pode ser negro, oprimido, mas também um homem, opressor. Você pode ser um gay, oprimido, mas também um cis, opressor. Você pode ser uma mulher, oprimida, mas uma hetero, opressora. Você pode ser um pobre, oprimido, mas um evangélico, opressor. Você pode ser um nordestino, oprimido, mas um neurotípico, opressor. Você pode ser uma surda, oprimida, mas uma carnista, opressora. Você pode ser um cego, oprimido, mas um europeu, opressor E assim por diante ao infinito...
Esses múltiplos sistemas identitários se chocam nos bastidores de um simples indivíduo, apesar das nossas tentativas desesperadas de controle, de coerência. Tudo isso nos leva direto a uma pergunta simples, mas inevitável: Existe unidade na esquerda identitária? É possível falar de “minorias”, como um tipo de substituto da noção de “classe” enquanto núcleo político? E a resposta é “não”. Na prática, não existem minorias, mas indivíduos diferentes em múltiplos circuitos simbólicos. Você é, ao mesmo tempo, um opressor e oprimido, assim como seus amigos e colegas. Ou seja, em questão de segundos, seus aliados mais importantes podem se converter em inimigos desprezíveis. Esse clima ansiogênico define o espaço político do progressismo contemporâneo, fazendo da esquerda identitária um projeto fadado ao fracasso.
O destino dessa esquerda é justamente o que aconteceu com Silvio Almeida, uma constante dissonância cognitiva e uma batalha sem fim com seus próprios membros. Como os sistemas identitários se chocam, esses grupos fiscalizam uns aos outros o tempo todo, o que chamo de canibalismo político. Movimentos identitários tendem a devorar seus integrantes sem qualquer tipo de prudência. O aliado de décadas se transforma em um monstro imoral em segundos, graças à aplicação de uma matriz identitária diferente. Lamento aos que ainda acreditam nesse projeto político, mas é impossível prosperar em um campo tão ácido, tão relativo, tão agônico. É impossível garantir qualquer unidade política em um espaço onde meus amigos e inimigos são fluidos e variam conforme a maré hermenêutica do momento, onde as conquistas de um homem negro, de décadas de investimento em lutas anti-racistas, são manchadas em minutos quando seus atos são interpretados dentro de uma chave identitária alternativa. PS: depois de vários fatos e depoimentos, até mesmo de amigas que passaram pelo assédio, eu duvido da inocência de Silvio Almeida, mas não é esse o ponto nesse ensaio. Eu não estou debatendo aqui se as “suspeitas identitárias” são verdadeiras ou não, mas o custo da existência de um clima generalizado de suspeitas, sejam elas fatos ou fakes. A veracidade das acusações é irrelevante dentro do tema escolhido nesse ensaio.
A hermenêutica da suspeita que atravessa os múltiplos sistemas identitários, transforma o mundo inteiro em um objeto de constante investigação, acompanhada de uma suspeita crônica. Uma simples palavra, um deslize verbal qualquer, um movimento aleatório de corpo, podem ser interpretados como um ato falho, um indicativo de alguma dimensão inconsciente operando nas sombras. Essa inconsciência depende do sistema simbólico em jogo, podendo ser o capitalismo, o racismo, o machismo ou qualquer tipo de ismo pelo caminho. Como disse no parágrafo anterior, não interessa muito se as acusações são reais ou não, mas sim o surgimento de um campo de extrema suspeita, além de um espaço encharcado de pressa e imprudência. Nesse caos epistêmico, um simples olhar, uma simples palavra, podem ser facilmente interpretadas dentro de matrizes identitárias e, portanto, de uma forma moralizante ou até essencialista. Resumindo... não espere cuidado metodológico, nem mesmo ético, por parte dos identitários. Pesquisas complexas se transformam em armas de ataque e defesa, nada mais e nada menos.
Silvio Almeida é apenas um exemplo famoso de milhares de outros casos espalhados pelo mundo, principalmente nas redes sociais. A esquerda identitária não precisa de reacionários como inimigos, porque o alvo principal é o seu próprio corpo. Sem dúvida, esse processo de autoreflexão é importante, como reconheci ao longo do ensaio, mas tem custos graves, da mesma forma que o hiperracionalismo de alguém com síndrome do pânico, ou fobia social, é sempre perigosa. Como nos lembra Dostoiévski, um espaço crítico ao extremo, um nível de consciência constante, não é um mérito, mas uma doença grave.
[1] Não me refiro ao próprio Foucault, figura complexa e relevante, mas à forma como ele é instrumentalizado e simplificado por grupos identitários
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No final , somos somente ser humanos, sendo ser humanos, lutando pelo poder... Copiei o texto do senhor, prof...