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MÃES DE ANJO: O LUTO DA PERDA GESTACIONAL



A psicóloga Syamala Martins Botero (@syamartins) divide conosco a sua história como mãe de anjo do Francisco Muni, uma jornada que a levou a discutir nas redes sobre a condição da mulher na maternidade e sua relação com o luto gestacional e neonatal. Confira essa entrevista exclusiva!


Primeiramente, conta para o público a sua trajetória na maternidade e a ideia de ser mãe de anjo.


Eu engravidei do Francisco quando eu tinha 22 anos, de um namoro. Na época, eu usava medicamentos contraceptivos, ainda assim, engravidei. Nunca idealizei a maternidade e nem pensava em ser mãe. Porém, quando engravidei, entendi como a sociedade tratava mal a mulher que se tornou mãe. Eu sentia muita dor na lombar, chegava a travar as costas. Fazia xixi a cada cinco minutos. Mas, o físico não me incomodava tanto quando a invalidação que sofria quando eu expressava como estava me sentindo. As pessoas não aceitavam que eu dissesse como era difícil gestar dizendo que isso, de alguma forma, poderia prejudicar o bebê. Eu me tornei mãe de anjo quando estava grávida de sete meses e meio. No dia 13 de junho de 2018, o Francisco nasceu morto. E tudo o que eu já sentia na minha gestação, em relação a invalidação e não ter as minhas necessidades minimamente ouvidas, quando eu me torno mãe de anjo, só piora. Meu luto é silenciado.


A mulher quando se torna mãe, só é validada quando tem a criança no colo.

A primeira vez que vi esse termo, mãe de anjo, foi na página de Instagram Grupo Colcha. Lá explicava sobre as mães de bebês que faleceram durante a gestação ou nasciam falecidos. Foi daí que eu comecei a falar sobre o assunto, relatando a minha experiência como mãe de anjo. Várias outras pessoas, mulheres e famílias se identificaram com a minha história. Na época, existiam poucos falando a respeito. Hoje, existem bem mais e isso me deixa muito feliz.




Graças a sua história, você passou a ajudar as pessoas a entenderem mais sobre perda gestacional, que se difere do aborto. Explica essas diferenças e como as pessoas tratam esse assunto como um tabu.


O aborto pode ser um dos motivos para a perda gestacional (porque ela é considerada até as 22 semanas de gestação), entre outras coisas que pode trazer incompatibilidade com a vida. O aborto espontâneo pode acometer entre 15% a 20% das mulheres e, ainda assim, o assunto é tratado como um tabu porque nossa sociedade tem uma dificuldade muito grande de lidar com a morte. Quando se fala da morte de um bebê, de uma concepção, de algo tão puro e com toda essa ideia fantasiosa da maternidade e da mulher grávida, se torna algo muito delicado a ser discutido.


Mas, é necessário esse diálogo porque, não importa o período da gestação, o impacto dessa perda pode acontecer. A mulher pode descobrir sobre sua gestação no momento do aborto espontâneo e se ela, naquela hora, se sentiu como mãe daquele bebê e o luto dessa perda, é essencial a validação do seu sentimento.

Aproveito para falar o quão importante também é validar o sentimento do pai, se for o caso. Se existir a validação daquela vida, teremos o luto, algo que pode ter um grande impacto no casal e na família, causando crises nas relações e até o término. Precisamos normalizar uma conversa franca sobre esse assunto.





Como você percebe o tratamento médico e o tratamento das pessoas diante de uma mãe de anjo?


Foi uma questão muito delicada porque, além de tudo, sou uma mulher gorda. Sofri gordofobia e muito preconceito logo que descobri que meu filho estava morto através de um ultrassom. O médico entrou na sala com os residentes e disse: “Aqui é um caso de óbito fetal. Com certeza deve ter sido por eclâmpsia”. Eclâmpsia é o aumento abrupto da pressão sanguínea que leva ao sofrimento fetal e ao óbito, da mãe e/ou da criança. Porém, se o médico tivesse se dado ao trabalho de olhar minha carteirinha de gestante, veria que eu não tinha pressão alta. Foi disso para vários outros tipos de violência obstétrica que eu sofri, inclusive no momento do parto. Frases como, “Ah, mãezinha, daqui a pouco você tem outro”. Hoje, como profissional da saúde formada, sei que, no mesmo hospital que eu pari o Francisco, já existe uma equipe muito mais humanizada. Ano passado fiz questão de conhecer a psicóloga responsável pela maternidade e há um tratamento diferenciado como, por exemplo, não colocar as mães que acabaram de perder seu filho junto com aquelas que acabaram de ter seu filho, que foi uma das coisas que aconteceu comigo. Na área da saúde, com mudanças nas diretrizes do SUS, vemos melhorias em relação a isso.


Quanto ao tratamento social, é outra coisa. Quando eu falava do meu filho as pessoas se compadeciam mas, não necessariamente validavam a minha dor.

Como disse antes, existe essa ideia de que a mãe é aquela que está com o bebê no colo, apesar que isso ainda é relativizado. Por exemplo, a mãe que adota, a mãe madrasta, a mãe de UTI é relativizada em sua maternidade. As dores são invisibilizadas de acordo com os nossos padrões sociais sobre o que é maternar.





Na sua jornada, você demonstra ter dado vários passos no seu processo de luto. Lembro bem do registro da sua formatura em psicologia levando o brinquedo do seu filho. Conta como foi e tem sido a convivência com o luto.


Ao contrário do que as pessoas pensam, o luto não é uma coisa que vem e vai. A sua dor não acaba quando você enterra quem você ama. A gente sente um buraco no peito, mas, com o passar do tempo, convivemos com ele, de forma mais íntima. Ele sempre vai estar ali. O significado dele vai mudando, conforme o tempo passa. Em momento nenhum isso quer dizer que você esqueceu quem você perdeu. Apenas que a sua vida tem um novo sentido. Quando você sofre um luto, você perde a vida que tinha, as perspectivas e expectativas que criou sobre o futuro. Então é necessário começar do zero. É uma necessidade social, emocional, psicológica e até química! No meu luto, primeiramente, eu precisei validar o que estava sentindo. Toda vez que eu falava do Francisco, sempre haviam aqueles olhares de espanto ou piedade, de pessoas me questionando o que eu fiz de errado, ou falando que ele era muito pequeno quando morreu, que eu não tinha sido realmente mãe dele e que logo poderia ter outro (como se a chegada de outra criança fosse capaz de apagar meu luto pelo Francisco….).


Por isso, eu encontrei muita força ao falar sobre isso porque assim eu sentia que validava a vida do meu filho. Ao fazer na internet, muitas pessoas se aproximaram de mim e eu tive a oportunidade de ouvir outros casos. Nesse ponto, até o significado dessa perda foi mudando para mim.

No início, eu queria que as pessoas entendessem a minha dor. Com o passar do tempo, passei a entender a minha dor. Quando eu entro na faculdade de psicologia, chego com vontade de mudar as leis relacionadas a violência obstétrica (felizmente, hoje muita coisa já melhorou) e foi a morte do Francisco que me impulsionou para isso. Esse polvinho azul faz parte de um método de desenvolvimento de habilidades para o bebê. A minha mãe, mesmo sem saber disso, encomendou essa pelúcia. Só conseguimos pegar ela 15 dias depois de passada a morte do Francisco e aí eu criei um significado muito grande por esse polvinho porque veio da avó dele. Ele me acompanha desde então. Já usei para apresentar trabalho na faculdade, para apresentar meu TCC e na minha formatura, quando fui pegar meu diploma.




Em seus vídeos você fala que para as mães de anjo o filho vai, mas o corpo pós gravidez fica e esse também acaba sendo um grande desafio. Como você tem trabalhado e aconselhado as mulheres sobre essa relação com o corpo materno?


A mulher sofre pressão estética o tempo inteiro, antes, durante e depois da gravidez. Depois da gravidez, muitas vezes, a mulher, influenciada pelas mídias, onde as famosas aparecem com a barriga chapada dias depois de parir, quer voltar a ter aquele corpo antes da barriga de grávida. Só que a gente sabe que isso envolve muito dinheiro, muitos procedimentos estéticos. Quando falo sobre isso nas minhas redes, é muito sobre compreender os nossos processos. Temos essa mudança na gravidez, que é algo muito complexo de se lidar - isso falando daquela que acontece conforme o figurino.


Quando a gente fala do meu caso, com perda gestacional, esse corpo, essa barriga, é só mais um lembrete do luto constante. Você sai do hospital sem a barriga de grávida, mas com os resquícios da gravidez, com seu corpo pós-parto.

E ainda entra as questões emocionais, como a queda brusca de hormônios que pode afetar a autoestima da mulher. Por isso, eu falo sobre a questão de viver o processo e de que não existe um antes, em relação ao corpo a ser alcançado. É um corpo que precisa ser olhado com carinho e que, claro, a mulher pode buscar meios para se sentir melhor nele, como fazer exercícios. A questão é se questionar se essas escolhas de melhorar esse corpo estão respeitando o momento dela ou se ela está se torturando baseada na vida de uma pessoa que vive outra realidade. É sempre bom lembrar para quem estamos querendo mudar nosso corpo. Se é para a gente ou para uma sociedade, um marido ou por pressão de terceiros. O processo de mudar o corpo, de forma natural e leve, pode ser prazeroso, contanto que seja junto com o acolhimento do luto.


Quais grupos, sites e páginas você recomenda para pessoas que queiram saber mais sobre esse assunto?


Muitas famílias que passaram por essa experiência da perda gestacional, por conta do que relatei sobre o tratamento médico e social, decidiram se juntar, se apoiar e formar grupos para terem sua dor compartilhada. Alguns que eu recomendo são os perfis de Instagram: @grupo_colcha (grupo para mamães/famílias de anjos, com relatos e suporte) e @galma.apoiomaterno (grupo para mães e famílias que perderam seus filhos e filhas).

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