Você acorda um dia e parece que sua cabeça não é mais a mesma. Seu corpo está estranho, com cheiros diferentes. Seu cabelo também não parece o mesmo e seu humor oscila o tempo todo. O mundo virou de cabeça para baixo e ninguém em sua volta te entende, fazendo com que você se isole em vários momentos. Sua única salvação é encontrar pessoas que estejam passando pelo mesmo, o que ajuda a sentir que ainda há esperança dessa ebulição de emoções passar. A descrição que fiz pode remeter imediatamente a sua adolescência, porém, pode ser facilmente aplicada a transformação de uma pessoa ao adentrar a maternidade. E isso tem nome! A Matrescência, a adolescência da maternidade.
De onde vem Matrescência?
Descobri esse termo Matrescência em inglês, “mastrescence” ao ver um vídeo de uma mãe explicando a relação das suas mudanças na maternidade como semelhantes às que viveu na adolescência. Encontrei mais elucidações em um artigo do New York Times, “Birth of a Mother”, onde se explica a Matrescência, a transição para a maternidade como um período semelhante à adolescência. Ou seja, desde estar grávida ao processo de adaptação aos cuidados de um bebê, o corpo passaria por uma nova puberdade, com hormônios enlouquecendo, cabelo e pele diferentes de antes da gravidez, além de um relacionamento novo sendo construído com uma mente com características únicas.
A diferença primordial é que uma criança se tornando um adolescente, apesar de incomodar, é tolerado seu comportamento, levando em conta que se sabe como as mudanças hormonais afetam o humor e as emoções nesse período. A estranheza de um adolescente é até esperado, visto que muitas pessoas experimentaram o mesmo sentimento nessa fase da vida. E uma mãe? Ainda que milhares de mulheres vivam essa experiência e sofram as alterações descritas anteriormente, o discurso predominante sobre o maternar é de que é um ato sagrado e divino, digno apenas de alegrias, encobrindo a possibilidade dessas mulheres-mães dividirem abertamente as sensações que vivem e trazerem para o mesmo campo da transição complexa da adolescência.
Entender esse período da maternidade como a Matrescência, com a mesma turbulência que descrevemos a adolescência não somente se torna uma forma de inspirar maior simpatia das pessoas que esperam apenas flores e sorrisos na maternidade, como é uma forma da própria mãe respeitar seus processos e se aceitar como alguém que nunca mais será a mesma. Seja nas mudanças mentais ou corporais, a pós-gravidez deixa marcas profundas nas mulheres que muitas vezes se cobram para “voltar”. Entender que a fase que viveram as mudaram para sempre, assim como acontece com o adolescente que não poderá mais voltar a infância, pode ajudar as mulheres-mães a diminuírem qualquer cobrança interna sobre ser alguém que não são mais. Assim como para um adolescente a despedida da infância não é um processo fácil, mas ainda existe a esperança de que outros passaram pelo mesmo e tudo deu certo no final, outras mães estão aí, vivendo a Matrescência, comentando e relatando o que viveram e mostrando que um dia elas chegaram na conclusão de que se transformaram para sempre após a maternidade.
Estudos sobre a Matrescência
Esse aspecto é minuciosamente descrito por Lucy Jones em seu livro “Matrescence”. A autora comenta que não sabemos reconhecer de verdade
“o significado psicológico e fisiológico de ser mãe: como isso afeta o cérebro, o sistema endócrino, a cognição, a imunidade, a psique, o microbioma, o senso de identidade”.
Afinal, o processo de tornar-se mãe é “uma transição que envolve todo um espectro de rupturas emocionais e existenciais”, semelhante ao que é vivenciado quando uma pessoa transita da infância para a adolescência, como comentado anteriormente.
Segundo uma review feita por Rhiannon Lucy Cosslett, o livro de Jones elucida pormenorizadamente as mudanças monumentais advindas com a maternidade, desde o fato de que as células fetais permanecem no corpo da mãe por décadas até a evidência de que a gravidez e o nascimento têm um impacto enorme, dramático e de longo prazo no cérebro humano, sendo permanente em alguns casos. De fato, o cérebro da Matrescência é trazido pelo livro como algo especialmente fascinante, bem diferente das descrições fantasiosas da sociedade que se chocam prontamente com as experiências das mulheres-mães e são pouco compartilhadas. Jones resume bem o sentimento da maternidade quando escreve:
“O mais próximo que estive da morte, do nascimento, do crescimento, do co-consciente, do êxtase, da ruptura – porém, de acordo com o mundo ao meu redor, foi algo normal, tedioso.”
Matrescência é maternidade real!
Por fim, falar da maternidade em sua pluralidade é uma conquista muito recente na história da condição feminina. As redes sociais impulsionam esse espaço, porém, ainda há muitos tabus a serem quebrados e conversas francas a serem encaradas. O termo Matrescência entra como mais um acréscimo a esse debate e impulsiona a possibilidade de um dia, finalmente, encararmos a experiência materna como uma campo humano, dado a mudanças, fragilidades, vulnerabilidades e obscuridades reais, para além da dinâmica fantasiosa e limitadora que o discurso social preconiza.
FONTE:
https://www.theguardian.com/books/2023/jun/29/matrescence-by-lucy-jones-review-the-birth-of-a-mother
Fonte da imagem: https://www.huffpost.com/entry/transition-motherhood-matrescence_l_63bf3275e4b0cbfd55ef26b0
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