O ano está prestes a virar e milhares de pessoas estão reunidas na famosa e elegante Avenida Champs Elysée, em Paris, esperando ansiosamente os últimos segundos para o início de um espetáculo de luzes e fogos fascinantes diante de seus olhos. Quer dizer… Não exatamente diante dos olhos, mas da tela de um smartphone que, com a câmera de vídeo ligada, está a centímetros de um dedo nervoso prestes a começar uma gravação incrível que vai parar em inúmeras redes sociais, será compartilhada nos grupos de amigos e parentes e se tornará um registro fixo da nuvem de dados daquela pessoa que se preparou para acompanhar esse dia tão inesquecível.
Porém, não apenas uma pessoa teve a simples ideia de gravar esse momento. De fato, milhares delas pensaram o mesmo numa cena digna de um roteiro instigante do Black Mirror, onde um celular desistiu de olhar para os céus brilhantes da cidade e registrou o mar de aparelhos apontados para as luzes coloridas. Um vídeo desse momento se espalhou pelo mundo da internet e movimentou vários diálogos sobre como a necessidade de fotografar ou gravar cada instante da vida pode nos roubar o viver, aquele simples viver da experiência, sem que isso necessite ser lembrado por um tela ou que se torne alvo de entusiasmados likes nas redes sociais.
Guardar memórias através de instrumentos diversos é uma necessidade humana muito antiga e que incute na vida social o valor de se contar e recontar histórias sobre um evento, belo ou trágico, ou apenas guardar uma marca do cotidiano que lá na frente se tornará um assombro para as novas gerações, assim como os adultos que viveram a fita cassete, o aparelho de som com CD player e até os amantes da vitrola podem mostrar aos seus adolescentes, através de fotos e vídeos, a experiência de ter um aparelho por vez ou um aparelho para cada necessidade. Afinal, hoje, o que temos é a aglutinação de várias possibilidades em um só aparelho, o ben- ou mal-dito celular.
Antes de querer apontar qualquer julgamento aqueles que estavam em Paris com celulares a punho, vou me colocar na própria experiência de quem detém um aparelho semelhante àquelas pessoas e que, quando está vivendo um momento sublime, carrega o ímpeto de registrar aquilo. Conheço bem aquele pulsar diferente de pensar que guardar aquela cena numa câmera pode me trazer boas memórias de um dia especial, de algo diferente que vivi e, sem falsa modéstia, da possibilidade de receber muitos coraçõezinhos no Instagram quando eu subir o material nos stories.
Nem sempre cedo a essa vontade e, o depois, pode tanto me trazer a tranquilidade de que vivi o momento por completo, sem ser interrompida pelos ditames da vaidade ou dos devaneios da mente, quanto pode me assombrar em uma frustração de não ter guardado aquela história que, eu sei bem, será rapidamente esquecida pelo meu pequeno e limitado cérebro humano. Por vezes, escrevo sobre o acontecimento para lidar com essa auto-decepção e criar uma compensação de que tenho algo registrado e posso acessar isso toda vez que o esquecimento me pegar de jeito. Mas, de qualquer forma, isso demanda um lugar de auto-regulação das minhas emoções e sensações, um exercício um tanto difícil e pouco apreciado na cultura impetuosa e consumista que vivemos.
Falando nesse aspecto, podemos absorver de outras culturas muito diferentes sobre o valor do tempo, de viver o momento, de estar pleno no presente e da experiência que toma forma no instante em si. Aprendi com muitas delas sobre isso, especialmente, a cultura oriental e seus paradigmas sobre mente plena e pacífica. Por exemplo, ao assistir o filme “Bollywood Dream – O Sonho Bollywoodiano” da diretora brasileira Beatriz Seigner que, em estilo de documentário, conta uma ficção sobre três atrizes brasileiras – interpretadas por Paula Braun, Lorena Lobato e Nataly Cabanas – que chegam na Índia em busca de oportunidades de trabalho na sua poderosa indústria cinematográfica, o Bollywood, me dou conta com uma cena instigante.
Nela, uma personagem carrega uma câmera nas mãos e registra um famoso festival do deus hindu de cabeça de elefante, Ganesha. Animados fiéis dançam ao som de instrumentos típicos e caminham como procissão em direção à beira de uma praia. Uma imensa estátua de Ganesha feita de gesso é carregada por alguns deles que, tomados pela devoção, cantam e bradam palavras de alegria e fé. Eles se aproximam do mar e lançam o deus hindu nas águas salgadas que, sendo feito de um material leve e fino, pouco a pouco, se desmancha, fechando a cerimônia com a singularidade de “destruir o ídolo” no mar.
A personagem está fascinada com toda a situação e se mantém firme em gravar tudo. Um indiano a observa de longe e comenta o que era aquilo nas mãos dela (em um das várias cenas espontâneas que o filme fez questão de manter em seu material). Ela responde que é uma câmera caseira de gravação, usada para registrar momentos da vida. Sem pestanejar, ele diz: “Para quê registrar esse momento? Isso acontece todos os anos. E todos os anos é a mesma coisa. Não precisa registrar. É só vir e ver que será a mesma coisa”. A moça espontaneamente ri e fica aí um pensamento que provavelmente estava distante dos amontoados presentes na importante praça em Paris. Todos os anos o show de fogos acontece. Tirando algumas pequenas diferenças, talvez seja a mesma coisa sempre. Os mesmo minutos de espera, as luzes cortando o céu e as pessoas, em vívida alegria, bradando ao alto a chegada de um novo ano.
Outro exemplo que posso dar sobre o que aprendi a respeito do tempo e da mente plena na cultura oriental é a fascinante arte de construir mandalas de areia no chão. Por dias (ou até semanas!), monges budistas tibetanos se dedicam a fazer complexos e delicados desenhos de mandalas, as chamadas dul-tson-kyil-khor. Usando areias coloridas, o trabalho é feito com um instrumento chamado chak-pur, um tipo de funil metálico na qual a areia é inserida e liberada a partir da vibração do material em contato com uma varinha, que fica na outra mão do monge. Em cima de um esboço geométrico, vários deles se reúnem e traçam as linhas e formas que irão emoldurar o desenho. Após finalizado, sabe o que eles fazem? Destroem! Simplesmente e arbitrariamente desmancham todo o desenho, entregando parte da areia para o público que estiver acompanhando a arte e outra parte sendo levada para os rios, dando um sentido de leveza para a perda e a temporariedade.
Não quero de forma alguma romantizar essas ideias e minimizar o valor do registro imediato que os aparelhos celulares nos deram, inclusive como instrumento de apoio valioso para casos de denúncia que, muitas vezes, eram negligenciados pela falta de gravações. Quero apenas relembrar, pegando o gancho dessa polêmica do mar de celulares em Paris, que mesmo que tenhamos diante de nós a facilidade de ter um mecanismo de registro tão simples em mãos, cabe ainda a nós entender que experimentar a vida depende de um escolha própria, feita no imediato segundo que estamos diante de uma experiência. A liberdade oferecida com o celular só vale a pena se formos livres para saber não usá-lo, ou, trazendo uma frase do filósofo Kant: “Você só é livre quando faz o que não quer”.
FONTE:
Ótimo texto. A ideia é manter um grau de liberdade em relação as tecnologia, para poder não usá-las. Rsss
Muitas vezes saio sem celular. Verdade que perco a chance de registrar muita coisa interessante,mas pelo menos curto o momento sem a preocupação de registrar.