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Foto do escritorKarla Fontoura

MAINHA E A COMPETITIVIDADE FEMININA



No meio da tarde recebo um telefonema de mainha, algo incomum para uma mãe que só quer se manter em conversas rasas e casuais no aplicativos de conversa. Atendo e, do outro lado da linha, ela parece agoniada e nervosa. Me avisa que meu irmão mais velho falou que estava doente e não tinha medicamento em casa. Ele perguntou qual era o melhor remédio, já que não sabia se estava com dengue. O desespero estava estampado na voz de mainha, que ficava repetindo qual era o remédio certo e que eu deveria ir lá entregar isso a ele. Eu aviso que vou fazer, mas que estou sozinha com meu filho e mandarei um mototáxi entregar na casa dele. Desligo o telefone. Minutos depois, é ela de novo. 


Mais irritada que anteriormente, mainha alega que não vai dar certo mandar o mototáxi porque meu irmão está com fortes dores no corpo e não vai conseguir descer na portaria para pegar o medicamento. Tomada por uma ira em ebulição, eu grito com mainha que vai dar certo sim, que meu irmão mora no primeiro andar de um prédio com elevador. Aproveito e relembro a ela que semanas antes passei pela mesma situação, sendo que eu e meu filho ficamos doentes juntos e ela não veio me ajudar, nem mandou ninguém, sendo que moro em um prédio com oito lances de escadas. Esbravejo que ela vê meu irmão como uma criança e está pouco se lixando para mim. Dou mais dois gritos de raiva e finalizo com um ridículo: “Ah, mainha,vá cagar!” Esse foi o máximo de xingamento que consegui falar. 


Essa é mais uma das várias situações que ilustram essa coisa esquisita que virou a minha relação com mainha. Ela nunca foi a mãe mais amorosa e cuidadora, mas, cabia bem naquele estereótipo de mãe que só sabe expressar amor pelo servir à casa e à família. Fez isso como mãe solo por anos e eu recebi muitos privilégios. Aprendi a entender o mecanismo dela, ao mesmo tempo em que tentava não dar tanto trabalho, sempre me dedicando a fazer minha parte na casa. Em meados dos meus vinte anos, mudei de cidade para noivar e casar. Nesse período, me amparei em não lhe causar preocupações e, por isso, nunca lhe falei sobre os abusos que sofria no casamento ou meus perrengues financeiros. 


Engravidei e tive um menino. À distância, ela parecia animada com a ideia de ter mais um neto, até o dia em que fui visitá-la com a criança pela primeira vez. Ela pareceu não se importar muito. Com ele um pouquinho maior, fiz uma nova visita e agora ela se mostrava extremamente irritada com tudo o que a criança fazia. Anos depois, por conta do meu divórcio, fui morar com ela e meu pequeno. Tudo piora significativamente e ela passa a tratar mal meu filho, com xingamentos pesados e expressões de desdém quando ele passava perto dela. Mesmo sem nenhum amparo financeiro, libero ela de me ajudar e ela vai morar sozinha. Mainha pede desculpas pelo comportamento com meu filho, mas, essa tendência de me rejeitar, me destratar ou não se importar comigo continua se repetindo ao ponto do acontecimento descrito no início do texto. 


Minha psicóloga me questiona como as pessoas veem mainha como pessoa e a única descrição que vem na minha mente é sua predisposição em sempre cuidar e ajudar os outros, especialmente os animais de rua, os quais ela tem um enorme apreço. Ela é a comadre bondosa do bairro que não quer ver nenhum cachorrinho ou gatinho de rua sofrendo, sabe? E mesmo se eu for visitá-la, sua postura é de me receber e até fazer questão de me apresentar (e reapresentar) a pessoas da vizinhança, falando com orgulho e certa alegria sobre ter um neto inteligente e sadio. Essa figura adorável simplesmente deixa de existir em certos momentos da nossa relação,  especialmente quando é sobre me proteger, me ajudar e me amparar. Já cansei de ouvir dos meus irmãos coisas que ela fala mal de mim sem qualquer motivo. Ou como ela escondeu a fruteira que dei para meu irmão e pegou uma da casa dela para dar a ele…


Por que? O que está acontecendo com mainha? O que se passou em nossa relação que, um dia, foi muito nutrida e doce? O que ela vê em mim desde que me tornei mãe? Infelizmente, a resposta que encontro para essa pergunta é a competitividade feminina. Vejo ela se acender no olhar dela quando digo como meu filho é craque em matemática e já consegue falar e ler em inglês. Percebo quando a explico que eu lancei um livro porque uma editora resolveu me convidar por conta do meu talento em escrever poemas. Enxergo quando exalto um prato novo que aprendi e que meus amigos amaram comer. Mainha está tomada pela competição e rivalidade feminina ao ver que a filha seguiu um caminho semelhante ao dela - mãe solo divorciada - porém, estou em condições melhores que as dela. Parece que ela vê em minhas vitórias o que não conseguiu e isso a faz me rejeitar automaticamente. 


Normalmente, associamos a competição feminina no lugar do amor romântico, onde mulheres disputam espaço para ganhar o coração de um homem, como Zanello apresenta bem nos seus estudos sobre o dispositivo amoroso, ao dizer:


“ao serem subjetivadas na prateleira do amor, as mulheres se subjetivam em uma relação de rivalidade umas com as outras, pois ou se quer mais (para ter mais chance de ser “escolhida”), ou apagar o brilho alheio.” (p. 269)

Mas, em uma observação rápida, vemos que essa rivalidade se espalha em várias áreas da vida onde as mulheres sentem que podem ser mais valorizadas, como o lugar de cuidar da maternidade. Não à toa, há uma disputa de narrativas quando um bebê nasce. Sua mãe, sua sogra e você não conseguem concordar qual o melhor método para melhorar a cólica noturna do seu pequeno. Você quer usar o medicamento recomendado pela médica, sua mãe acha exagero e fala do café que você tomou de manhã e sua sogra prefere usar uma simpatia que aprendeu com a vizinha. 


Claro que tudo isso é o que consigo abarcar quando falo nesse assunto.Tenho consciência de que existem muitas outras camadas na subjetividade de mainha e outras mulheres-mães que não consigo acessar, afinal, falar de emoções e se mostrar vulnerável para os filhos nunca fez parte do repertório de muitas delas. Há questões de autoestima em torno desse comportamento que elas não querem conversar ou acessar, especialmente através de suas filhas. Particularmente, vejo até uma certa punição por parte de mainha em não me ajudar, afinal, ela foi mãe solo de três filhos e fez “tudo sozinha!”, como faz questão de exaltar quando lembramos do passado. Parece que ela não quer me dar o direito de desfrutar do cuidado dela para que eu não receba o privilégio que ela não teve. 


Vamos levar em conta também a diferenciação que ela faz com o homem e a mulher da família. Para ela, meu irmão é sempre desamparado e incapaz de cuidar de si (mesmo ele sendo mais velho que eu…). Eu posso cuidar de mim, da casa, do emprego, do menino, da saúde, e de outras mil pautas infinitas da minha lista de afazeres. Alinhando-se a sociabilidade feminina, mainha reconhece minha capacidade de cuidar como inata, algo que foi analisado nos estudos de Chororow (2002):


A maternação das mulheres perpetua-se através de mecanismos psicológicos e sociais estruturalmente induzidos. Não é um produto imediato da fisiologia. As mulheres vêm a maternar porque foram maternadas por mulheres. Por outro lado, porque os homens foram maternados por mulheres suas capacidades de cuidar de crianças ficaram reduzidas.” (p. 261)

É muito desafiador escrever esse texto, seja por estar expondo mainha e os males dela, (algo desconfortável para quem carrega uma enorme culpa por ser filha de uma mãe solo), seja pela exposição dessa dor tão íntima que inevitavelmente conversa com um fenômeno coletivo. Por vezes, entendo que, para lidar tanto com ela quanto com outras mulheres dessa geração, a melhor forma de ser feminista é não ser engolida pelas palavras e comportamenos danosos e, com muita paciência e amor, entender as escolhas que foram feitas, ao mesmo tempo em que tento focar em não passar para frente esse legado de rivalidade e competição. 


Fonte: 


CHODOROW, Nancy. Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.


ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Editora Appris, 2020.


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