*Jucemara Chiarotti Soares
Nunca tinha ouvido falar em luto animal até que por sincronicidade, destino ou essas coisas que não sabemos explicar, recebi um convite para seguir uma página no Instagram uma semana após a morte de uma cadela da qual fui tutora por onze anos. Dei uma olhada e elogiei o trabalho. De fato, acho importante trabalhar nossos lutos sejam lá qual forem, apenas não sabia que havia algo tão especifico.
Alguns dias depois recebi uma proposta para fazer o tal acompanhamento, seriam 5 encontros on-line e caso necessário mais alguns a definir. Confesso que a princípio achei bobagem, algo que não merecia tamanha atenção, e que não estava mal a ponto de precisar de terapia, afinal, era só um cachorro.
Meg era o nome dela, vira lata nascida e criada no quintal de minha casa, filha da Nina, outra vira lata muito amada que faleceu em 2021 aos 14 anos. Sem luxo ou “frescuras”, tomava banho de mangueira no verão, e só dormia dentro de casa em três ocasiões, quando chovia forte, quando a temperatura ficava abaixo de 5 graus e no ano novo, pois a coitada ficava apavorada com o barulho dos fogos de artifício. Era independente e me acompanhava a padaria todas as manhas sem coleira e adorava comer pão, as vezes dava até uma volta pelo bairro desacompanhada. Sempre feliz e companheira, amava brincar com as crianças no quintal, mas enganava bem, os estranhos que se aproximavam tinham medo, latia forte e seu porte médio assustava.
O motivo de sua morte é desconhecido, já que não tive condições financeiras para levá-la ao veterinário, nem poderia pagar por cirurgias ou tratamentos que sabemos ser bem caros. Encarei a realidade e fiz o que pude, dei alimentação pastosa na colher, analgésico, soro caseiro, e acompanhei por quase 15 dias seu sofrimento e a tentativa de se reestabelecer, em algumas noites eu rezava pra ela morrer logo e acabar de vez com o sofrimento que estávamos passando, já que a cada dia ela piorava, e eu já não tinha mais esperanças de que fosse se recuperar. Numa manhã de quinta-feira ela partiu. Tive a chance de fazer um último carinho, olhar nos olhinhos dela e agradecer por tudo que vivemos juntas, sua companhia nos bons momentos e também nos mais difíceis e que ela podia ir tranquila, pois tinha sido uma ótima amiga.
Já havia marcado a data do primeiro atendimento e quando o dia chegou fiquei relutando comigo mesma, achava uma besteira, que era melhor desmarcar, que já tinha superado e que não me serviria para nada. Uma outra parte de mim dizia, vai lá, não custa nada, não se joga fora uma oportunidade dessas, já que havia combinado uma permuta, então a curiosidade enorme que habita em mim falou mais alto.
Já na primeira sessão descobri que na verdade eu estava querendo fugir de uma dor enorme que havia empurrado pra “debaixo do tapete”, que não queria encarar. Sentia muita culpa por não poder ter oferecido um bom tratamento, por não ter feito algo pra que ela não tivesse sofrido tanto, além das lembranças e da falta que ela me fazia todas as manhãs. Chorei muito, pude abrir meu coração e contar com o apoio da profissional que me atendia e juntas fomos trabalhando essa dor ao longo dos outros encontros.
O processo foi doloroso, mas compensador. Pude desabafar, ouvir e ser ouvida, sentir o que precisava, com a intensidade que precisava. Trabalhar a culpa e entender que fiz o melhor que pude naquele momento, com os recursos que tinha, e que a morte pode até ser adiada, mas não evitada, pois tudo que vive um dia morre, inclusive eu e você. Escrevi uma carta pra ela, pedindo desculpas por minhas falhas e agradecendo por todos os bons momentos, fizemos rituais e a homenageamos e a cada sessão os sentimentos foram se acalmando e encontrando cada qual seu lugar em meu coração.
O mais curioso, no entanto, foi perceber que essa dor não havia começado agora, com a morte da Meg, ela já estava “embaixo do tapete” a muitos anos, e se relacionava com todas as perdas que eu havia passado na vida, e olha que já fiz terapia por alguns anos, mas nunca havia de fato entrado nessa “porta” que nos permite olhar nos olhos da morte. Percebi que algumas vezes fugi, outras não tive sequer oportunidade de vivenciar meus lutos, pois a vida muitas vezes nos atropela e não permite olharmos pra ele. Nos dizem que precisamos ser fortes, não ficar chorando pelos cantos, superar o quanto antes, voltar logo a trabalhar, muitas vezes nem parar, fingir que está tudo bem e seguir a vida, ocupando a cabeça com os filhos, família, trabalho, nos distraindo com qualquer coisa, menos olhar e se permitir sentir essa dor dilacerante que é perder alguém ou algo que amamos. Hoje sei o quanto isso prejudicou minha vida em diversas áreas, no decorrer dos anos e a cada perda a dor se acumulava e crescia.
Pude perceber que a morte, assim como a vida, está em todo lugar. Quando perdemos um objeto que estimamos ou que guarda uma memória afetiva, dói. Quando perdemos um emprego que gostávamos, dói. Um relacionamento que não deu certo, dói muito, e uma traição então, nem se fala. Perder dinheiro e bens materiais, dói também. Mudar de cidade, de país e ter que deixar uma história pra trás, como acontece com os refugiados, ou com aqueles que enfrentam catástrofes naturais deve doer muito. Pessoas que amamos, é dilacerante. E perder nossos companheiros de jornada, nossos pets, não é bobagem. São dores que se ignoradas podem gerar doenças no corpo, na mente e na alma, prejudicar nossa forma de ser e estar nesse mundo. Precisamos olhar pra esse luto sim, dar a ele seu devido valor, cuidar dessa dor, pra que ela não se torne uma ferida, e que, no tempo certo, ela possa ser acolhida e abraçada de forma amorosa e fazer parte da história de nossas vidas.
*Psicanalista, arte terapeuta e costureira, se dedica a estudar Psicanálise e espiritualidade, Arteterapia, Filosofia, Astrologia, e o universo feminino.
Maravilhoso seu texto 👏🏽
Que lindo teu processo. Te conheço ha uns 10 anos, vi de longe vários processos seus. Vi outros mais de perto. E, ler este texto fez brotar aqui um sentimento de alegria e amorosidade por você e pela tua história. Muito relevante, especialmente num mundo tão volátil, onde tudo é feito as pressas, no automático. BJIM.
Realmente,um texto muito tocante e como vc vai associando a perda dela com outras perdas que sentimos na vida. Artigo nota 10,brilhante!
Garota, muito, muito e muito importante seu texto. Esse é um dos lutos que são invisibilizados. E como você falou, é morte, é vínculo e por isso dói. E cuidarmos desse luto é importante e necessário. Infelizmente nesta sociedade “do ontem”, até a dor tem que ter tempo para findar. Parabéns pela coragem e por escrever. Vou compartilhar com algumas pessoas que estudam luto. Bj