Tanto em “Layla. M” como em “Califado”, a escolha estilística overexposure, que em português pode ser entendida como a técnica cinematográfica de iluminar excessivamente as imagens, conferindo-lhes o efeito e a sensação de superexposição que nos envolve em atmosferas dramáticas, é utilizada para chamar a atenção para conflitos cujas consequências são catastróficas, mas que frequentemente são ignorados.
No longa-metragem “Layla. M”, dirigido por Mijke De Jong, desde o início somos colocados como testemunhas, ao sermos induzidos a observar cenas que se assemelham a registros documentais de uma partida de futebol, cujas regras são desrespeitadas e a protagonista/jogadora se torna vítima de uma arbitragem injusta. A jovem muçulmana, que na trama vive com a família em Amsterdã, na Holanda, denuncia aos gritos que as mesmas “regras” infelizmente não valem para todos, especialmente quando se é “forasteira” e se é constantemente lembrada dessa condição por aqueles que se entendem enquanto nativos.
Já na série “Califado”, dirigida por Goran Kapetanovic, somos surpreendidos por histórias paralelas de mulheres vivenciando diferentes estágios desse conflito. Assim como na vida real temos “causa-efeito” e “ação-consequência”, envolvendo vários atores e setores da sociedade, seguindo essa mesma linha, ao longo da obra, as histórias dessas mulheres se cruzam.
Tanto “Laila. M” quanto “Califado”, exploram as principais causas do sentimento de não pertencimento, latente em adolescentes em busca de identidade e referencial. E isso pode ser observado em “Califado”, já no primeiro episódio, no diálogo entre Sulle e Mustafa. Onde Sulle queixa-se a Mustafa sobre como os muçulmanos são obrigados a abrir mão de sua identidade islâmica para serem aceitos na comunidade sueca, e da discriminação sofrida nos postos de trabalho, aos quais não são inseridos.
No mesmo episódio, nas próximas sequências, temos a policial Fátima, uma mulher árabe que coopera com a polícia sueca na divisão de ataques terroristas, mas que coloca em risco a vida de Previn, uma outra jovem muçulmana que pede ajuda para retornar do Califado-Raqqa para a Suécia, a troco de reconhecimento e de uma possível promoção de cargo. Para quem não se recorda ou não sabe, a cidade de Raqqa fica situada no centro-norte da Síria, e foi tomada pelo Estado Islâmico em 2014, que criou o Califado, nome ao qual a própria série se inspirou para ter como título, mas que foi libertada do governo extremista do Estado Islâmico no ano de 2017.
Mas voltando, para entender melhor a dinâmica desses processos aos quais as duas produções abordam, é importante introduzir o conceito de aculturamento, que refere-se aos modos de mudanças culturais e psicológicas que ocorrem quando grupos de diferentes culturas entram em contato contínuo e direto, resultando em adaptações na cultura original de ambos. Porém, esse processo pode se tornar violento e colonizador se essas trocas não forem “mediadas”. E as duas obras apontam para ausência de políticas de inclusão eficazes nos países europeus que recebem imigrantes, ressaltando a falta de esforços concretos para integrar esses jovens à sociedade. Sendo uma das consequências e também fator crucial, a inexistência de perspectivas de futuro e de oportunidades de emprego, o que acaba por aprofundar o sentimento de estar à margem dessas sociedades, tornando-os mais vulneráveis ao recrutamento feito por grupos de extremistas.
Em “Layla. M” e “Califado”, temos “ficções de realidades” que, fora do universo cinematográfico, se tenta apagar. A polícia, enquanto “aparelho do Estado”, assim como em toda estrutura capitalista, está presente apenas para evitar novos atentados e prender terroristas, mas não trabalha na prevenção de forma eficaz por meio de políticas que sanem ou minimizem essas questões. Enquanto isso, o fundamentalismo religioso, explorando as vulnerabilidades já mencionadas acima e tantas outras que esse pequeno texto não dá conta, continua recrutando jovens, principalmente pelas redes sociais.
As injustiças das guerras promovidas e financiadas pelos países europeus, que causam a necessidade de fuga do Oriente Médio para a Europa, influenciam profundamente esses jovens. Eles veem as violências contra seus conterrâneos e sentem a necessidade de tomar partido. Esse sentimento de massacre contra seu povo faz também com que vejam esperança nos grupos extremistas, mesmo embora esses grupos não sejam a solução. Em ambas as obras, somos introduzidos nesse universo de sedução e convencimento, que manipulam sentimentos e percepções através de ideologias políticas e religiosas.
O processo de enculturamento, onde um indivíduo aprende e adquire valores e normas de sua própria cultura, é representado pelas personagens em “Laila. M” e “Califado”, quando essas passam a reafirmar suas raízes e valores culturais, porém, não tendo mais a família ou a cultura circundante como referência, mas os valores do fundamentalismo religioso.
O hijab, vestimenta religiosa utilizada por mulheres muçulmanas, é colocada como representação de inúmeros significados e símbolos, que em ambas as histórias, nos conduzem para momentos de tensão e de viradas nas narrativas. A sensação de angústia nos toma, ao testemunhar adolescentes em formação tomando decisões difíceis. É essas sentimentos são transmitidos aos espectadores de forma proposital, assim como o sentimento de impotência dos pais, que lutam para não perder seus filhos para o Estado Islâmico.
Não há final fechado e feliz nas duas histórias, assim como na vida real não há guerra vitoriosa e final feliz. Ambas as obras deixam provocações e lacunas para reflexão e discussão mais aprofundada, de modo que se possa acolher aspectos mais complexos dessa problemática. “Laila. M” e “Califado” colocam refletores para que possamos ver aspectos importantes da “guerra ao terror” e que são frequentemente apagados. Tá aí! Reflitam: “o buraco é mais acima”.
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