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JUSTIÇA EM SILÊNCIO: Trauma, Medo e Violência Invisível em “Uma Família Quase Perfeita”




Nesta semana, em meios aos compromissos do dia a dia, durante uma pausa e outra resolvi procurar uma série para assistir nos canais de streaming. Ao olhar o catálogo da Netflix, encontrei a minissérie “Uma Família Quase Perfeita”.


Ambientada na cidade sueca de Lund, a trama é baseada no livro de M. T. Edvardsson e conta a história de Stella, uma garota de 19 anos que é acusada de assassinar a facadas o seu namorado Christoffer Olsen, de 32 anos. A partir deste trágico acontecimento, os seus pais, o pastor Adam e a advogada Ulrika, fazem de tudo para retirar a acusação da filha. Como o próprio título da série diz, os três personagens principais, no início da trama, eles aparentam ser uma família típica de comercial de margarina, que convivem em harmonia e que enfrentam juntos os problemas corriqueiros da vida.


Mas um acontecimento grave mexe com as estruturas dessa família. Stella, aos 15 anos, sofre um abuso sexual em uma viagem da escola com o seu time de handball cometido pelo assistente do treinador do time. Os pais decidem não prestar queixa às autoridades, pois as chances de o agressor ser preso e condenado são mínimas, pois a palavra da vítima não seria forte o bastante para garantir a condenação e posterior prisão do acusado. Além disso, Stella teria que passar por um processo doloroso ao reviver o trauma.


A minissérie é dividida em seis episódios e faz parte do gênero noir nórdico e, apesar de trazer como foco principal o crime e a investigação, a história apresenta temas delicados, porém relevantes e que devem ser colocados em pauta. Ao acompanhar a trajetória de Stella, durante a fase de julgamento do crime que ceifou a vida do seu namorado, a série escancara o ciclo da violência sexual e institucional.


A obra evidencia a falência das instituições em proteger vítimas de abuso, apontando para um sistema de justiça que, ao revitimizá-las, contribui para a perpetuação da violência. O suspense jurídico serve de espelho para realidades dolorosas: o silêncio das vítimas de abuso, os traumas que as marcam para sempre e a atuação vacilante das instituições que deveriam protegê-las.


Um dos momentos mais marcantes da série é quando a amiga de Stella decide depor em juízo e revela que também foi abusada sexualmente por Christopher, o namorado assassinado. Ao invés de acolher esse relato com a seriedade que merece, a Promotora de Justiça insinua que a jovem pode estar mentindo. Essa dúvida institucional — vinda de quem deveria proteger — é mais do que uma falha de escuta: é um ato de vitimização secundária, que lança sobre a vítima o peso da desconfiança e do descrédito.


Esse tipo de resposta reforça o silêncio. Se uma mulher, ao denunciar um abuso, se vê imediatamente questionada, julgada ou desacreditada, qual a segurança para outras vítimas romperem o silêncio? O efeito é coletivo: a institucionalização da dúvida desestimula novas denúncias, intensifica a vergonha e transforma o sistema de justiça em um novo agressor.


A criminologia define como vitimização primária a agressão direta sofrida pela vítima — neste caso, o abuso emocional, psicológico e possivelmente sexual vivido por Stella e por sua amiga. É o início do trauma. No entanto, a série também mostra a vitimização secundária: o momento em que a amiga de Stella, ao depor no julgamento, busca ser ouvida sobre o crime que sofreu, mas encontra descrédito, julgamento moral, e uma justiça cega à complexidade da violência de gênero, reproduz o ciclo de revitimização, onde a dor é amplificada por processos burocráticos e reações sociais insensíveis.


Já a vitimização terciária ocorre no ambiente social da vítima e é provocada por pessoas próximas, como familiares, amigos, colegas de trabalho ou comunidade. Ela se manifesta por meio de julgamentos, afastamentos, culpabilização velada ou explícita.


Desta forma, são refletidos padrões e estigmas enraizados na sociedade. Esse tipo de vitimização tem impacto profundo na vida íntima da vítima, especialmente nos casos de crimes sexuais, como o estupro, sendo muitas vezes a mais dolorosa no pós-crime. Em muitos casos, leva à auto vitimização, quando a própria vítima internaliza a culpa pela violência sofrida, agravando seu sofrimento psicológico.


Uma Família Quase Perfeita é um chamado à ação: por uma justiça que escute, por uma sociedade que acredite e por políticas públicas que rompam o ciclo da violência em todas as suas camadas — da agressão inicial à omissão institucional. Mas é também um lembrete de que, enquanto a palavra da vítima seguir sendo desacreditada, o silêncio continuará sendo a única defesa possível para muitas. Romper esse silêncio exige mais do que leis: exige empatia, escuta qualificada e coragem coletiva para enfrentar as estruturas que ainda protegem os agressores e isolam quem ousa falar.


REFERÊNCIAS:


NUNES, Eliza da Silva et al. O processo de vitimização nos crimes contra a dignidade sexual: busca de redução de danos. 2018.


SILVA, Luiza. Uma Família Quase Perfeita: o sucesso do noir nórdico. Elle Brasil, 27 nov. 2023. Disponível em: https://elle.com.br/cultura/uma-familia-quase-perfeita-o-sucesso-do-noir-nordico. Acesso em: 9 abr. 2025.

1 Comment

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carlosobsbahia
carlosobsbahia
há 2 dias

Eu assisti essa série,mas juro que recordo de pouca coisa. O que me chamou atenção é a proximidade da temática com a absolvição de Daniel Alves,o que gerou muita revolta.

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SOTEROVISÃO
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