Com certeza você já deve ter visto por aí o uso do “todes”. Na verdade, talvez seja até mesmo algo do seu próprio repertório, um tipo de recurso usado com orgulho em seus textos e apresentações. Antes de afiar sua espada contra minha pessoa, ou erguer seu escudo estratégico e conveniente, quero deixar claro que EU VIM EM PAZ.
Thiago Pinho movimenta a bandeira branca com entusiasmo, enquanto aperta a mão do leitor desconhecido
Os comentários abaixo são mais suaves do que aqueles encontrados em plataformas como Twitter, Instagram ou Facebook. Eles não têm como meta questionar as virtudes dos neutralizadores, muito menos o caráter dos envolvidos nesse gesto. O que está sendo debatido nesse ensaio não é a motivação por trás dos neutralizadores (crítica da extrema direita), mas apenas a eficácia de suas estratégias dentro da língua portuguesa. Em outras palavras, esse é um texto progressista.
A esquerda liberal norte-americana, também chamada de nova esquerda, criou na década de 60 e 70 novas formas de militância política, incluindo novos campos de batalha... a linguagem foi um deles. As táticas de neutralização eram usadas como uma alternativa de superar certas práticas de violência dissolvidas na forma como nos comunicamos. Muitas dessas estratégias surgiram de autores pós-estruturais, figuras que quase sempre privilegiaram a linguagem como suporte de crítica e emancipação. Por exemplo, em seu livro “a verdade e as formas jurídicas” Foucault critica o uso do verbo “ser” e sua tendência em reprimir e simplificar a complexidade de corpos e circunstâncias. Judith Butler, da mesma forma, segue o mesmo percurso quando questiona o uso de expressões como “eu sou mulher”. Já figuras como Deleuze criticam os “substantivos”, acreditando que eles são incapazes de acompanhar um certo senso de processo, movimento. Em vez de “cavalo”, diria Deleuze, por que não falar de um “devir-cavalo”, um objeto em um constante fluxo de transformações? Como é possível perceber, a esquerda liberal, quase toda ela de base pós-estruturalista, observa a linguagem não apenas como um campo de análise, mas também de intervenção.
No inglês, língua de onde surgiram os primeiros neutralizadores, ao contrário de línguas latinas, como português, espanhol, italiano e francês, a neutralidade da língua é de fácil aplicação, já que gira em torno da recusa de certos pronomes (he, she, him, her, his, her, etc). Todas as outras modalidades da língua, como substantivos, adjetivos e advérbios não precisam de qualquer mudança, pelo simples fato de não carregarem nenhum traço de gênero. Quando alguém diz: “the student is beautiful”, quem é esse estudante? No inglês, é impossível definir o gênero pelo substantivo[1] (student) ou pelo adjetivo (beautiful). O problema começa quando a frase ganha algum pronome: “she is beautiful” ou “her hair is beautiful”. Quando seguimos rumo ao português, ao contrário, nos esbarramos em um grande obstáculo. O gênero entre nós não é apenas pronominal, mas atravessa cada detalhe do nosso idioma.
Na prática, como a língua portuguesa não pode ser neutralizada (isso seria um esforço gigantesco, um cansaço fora do normal), o que o palestrante faz é basicamente introduzir o “neutro” no começo da fala: “bom dia a todes” e no fim da fala “boa noite a todes”, de vez em quando incluindo alguns rápidos complementos (alunes, aprovades, etc). De qualquer forma, a neutralização (no português) apenas ocorre nos segundos iniciais e finais de uma palestra, como aconteceu com a própria Janja em uma de suas apresentações. Por isso fica aqui a pergunta: “se a língua portuguesa não pode ser neutralizada, se a neutralização se limita a alguns segundos introdutórios iniciais e finais, comprometendo dessa forma a própria meta de inclusão, qual a finalidade do uso do “todes”? Segundo uma rápida análise sociológica, podemos dizer que ela tem, antes de mais nada, um papel de totem, comunicando o posicionamento político e ético do palestrante. Como é impossível neutralizar uma palestra de 50 minutos, com centenas de substantivos, adjetivos e advérbios, pelo menos o palestrante é capaz de se autodefinir. Eu diria que a neutralização da língua (no português) acaba se tornando, no sentido de Bourdieu, muito mais um capital linguístico, uma forma de distinção. O gesto neutralizador se refere mais ao palestrante do que a uma possível meta política ou ética de fundo. Ou seja, ela fala mais sobre como eu quero ser visto pelo meu público, como eu desejo ser definido por quem me assiste... é um gesto identitário!!!
Diante desses meus argumentos, você poderia perguntar: “Isso significa que a neutralização no português deve ser abandonada?” Embora o tom do texto tenha sido um pouco crítico, eu não iria tão longe. O importante, pelo menos, é adaptar suas fronteiras dentro da especificidade do português, ao invés de simplesmente importar um projeto linguístico norte-americano, como muitos grupos de pesquisa e militantes fazem. Caso queiram insistir na neutralização como arma de resistência, estratégia típica da esquerda liberal desde a década de 60, pelo menos adaptem aos contornos da nossa realidade brasileira (latina), caso contrário ou ela vai se tornar elitizada, um simples exercício de distinção de uma certa classe de progressistas, ou vai ser completamente incompreensível, como aconteceu com uma mensagem recebida por mim em 2021: “Bom dia a todes alunes aprovades no mestrade”. A única maneira de evitar essas armadilhas é descobrir no português uma forma própria de bloqueio das dominações linguísticas, estratégias que dizem respeito muito mais a nós, brasileiros, ao invés de ser uma simples cópia de um projeto liberal norte-americano.
[1] Existem algumas exceções como “policeman”, “fireman” e outros substantivos semelhantes.
Referência da imagem:
https://www.poder360.com.br/governo/primeira-dama-se-apresenta-como-janja-lula-da-silva/
O uso da linguagem neutra é vista como inclusiva,porém,a reação de quem acha isso uma bobagem pode fortalecer o lado mais virulento e neutralizar as motivações deste uso linguístico.