No coração árido do sertão, onde os sonhos se misturam com a poeira vermelha, surge a saga de Canudos, um ponto de conflito tão complexo quanto as entranhas do próprio Brasil. Ali, entre a aridez das terras baianas, onde a seca sussurra suas maldições e a esperança parece um frágil fio de água no deserto, brotou um movimento que desafiou os cânones da ordem estabelecida.
Um dia desses conversando com o Rubem (Urso da Montanha), amigo novo, de projetos novos e de mente amplificada, iniciamos um debate sobre esta cidade sui generis. O imaginário, o escrito e tudo o que compõem sua história profunda. Essa viagem me transportou para um local totalmente estranho e ao mesmo tempo familiar, onde qualquer ser humano alguma vez na vida pousa, acredito. Esse lugar que se chama liberdade, algum dia chamou-se Canudos.
Canudos, um nome que ressoa como um eco sombrio da luta pela liberdade e pela autonomia. Sob a bandeira do anarquismo, uma comunidade se ergueu, desafiando a lógica do poder e as amarras da opressão. Homens e mulheres, destemidos e livres, buscavam no cerne daquela terra árida uma utopia possível, um refúgio contra as agruras da vida sob o jugo de um sistema que os negava.
Mas eis que surge Euclides da Cunha, com sua caneta afiada e seu olhar distante, para retratar Canudos em sua obra imponente, "Os Sertões". Uma narrativa que se ergue como uma muralha de pedra, imponente e inabalável, erguida sobre os destroços daqueles que ousaram desafiar a ordem estabelecida. Em suas páginas, o sertão se torna um campo de batalha, onde a retórica da civilização esmaga os sonhos frágeis dos que se atrevem a sonhar além das fronteiras impostas.
E que fronteiras são essas, senão as muralhas erguidas pela mentalidade colonialista, pela arrogância dos que se julgam senhores do destino alheio? Dividido em três partes, o livro parece ter sido escrito para fazer com que as discussões sobre a cidade jamais pudessem existir sem antes consultá-lo. Estão ali informações sobre o local, a construção histórica da cidade e ao final, com o sabor do latifúndio, a guerra libertária. Canudos, em sua rebeldia, em sua busca pela liberdade, foi reduzido a um monte de ruínas, a um símbolo do fracasso da utopia, aos olhos de uma elite intelectual que jamais pisou naquelas terras áridas, que jamais sentiu o pulsar da vida entre os espinhos do mandacaru e essa planta suculenta me lembrou um trecho de um poema de Ediney Santana, poeta filho de Mundo Novo, no semiárido baiano:
“Mandacaru chorou na cerca
juliana foi-se embora
o ar que se respira aqui
em outro lugar não há não
na garganta um grito
no rosto, uma decepção
Ver meus filhinhos indo embora
rotulados de retirantes
isso não está certo não!
Não está certo não!
Dentro desse corpo cansado bate um coração!”
Ah, os sertões de Euclides, tão distantes da realidade que escorre pelos dedos ressequidos dos que labutam sob o sol inclemente! Tão cheios de pompa e circunstância, tão repletos de análises e conjecturas, tão distantes do verdadeiro pulsar da vida sertaneja. É como se tentassem aprisionar o vento, domesticar as águas revoltas do rio, enclausurar o próprio sertão em palavras áridas e estéreis.
Que ironia, não? Que enquanto Euclides da Cunha erguia seu monumento à racionalidade, à ordem, à civilização, Canudos se erguia como um desafio, como um grito de rebeldia contra os grilhões da opressão. Enquanto as páginas de "Os Sertões" se enchiam de retórica e análise, nas vielas poeirentas daquele arraial, homens e mulheres lutavam por uma vida digna, por um pedaço de céu sob o qual pudessem ser livres.
Então, que falem os sábios, que dissertem os intelectuais, que analisem os críticos. Que tentem, com suas palavras pomposas e seus argumentos eruditos, aprisionar o espírito indômito de Canudos em suas teorias acadêmicas. Porque, no final das contas, o sertão é mais do que um punhado de palavras escritas em páginas amareladas pelo tempo. É um lugar de sonhos, de lutas, de resistência. E é nesse sertão que Canudos vive, para além das análises e das interpretações de quem jamais ousou sentir o pulsar da sua alma rebelde.
FONTE:
https://g.co/kgs/tETsNCx (Ediney Santana)
Reflexão profunda!