Em um mundo cercado de filmes, sejam eles de comédia, ação, aventura, drama e terror, existe um sentimento de que algo se destaca nesse mar de possibilidades. Por mais indefinido que seja, essa sensação é real, está sempre lá, muitas vezes de um jeito modesto, oculto, sutil. Mas o que de fato ela é? Antes de responder ao nosso título provocativo, é preciso recuar alguns passos atrás, tendo em mente a seguinte pergunta: O que torna um filme uma obra de arte?
Como você já deve ter percebido, vou evitar com todas as minhas forças a solução confortável dos liberais e pós-estruturalistas, ainda que pareça sedutora e conveniente. Ou seja, eu não acredito que filmes são subjetivos, pelo menos não 100%, da mesma maneira que não enxergo a ciência e outras instituições como simples produtos de uma subjetividade qualquer. Para além do lugar de fala, e de seu relativismo epistêmico, existe algo mais consistente, pelo menos esse é o objetivo desse ensaio. Embora seja confortável acolher o relativismo dos liberais e pós-estruturalistas, já que ninguém se responsabiliza por nada proposto, muito menos assume os riscos dessa mesma proposição, vou defender um critério mais sólido, mais universal.
Segundo o filósofo Theodor Adorno, em seu livro “a Estética”, uma obra de arte legítima não pode ser uma simples mercadoria. Mas o que representa exatamente essa palavra? Mercadoria em Adorno não significa o simples uso de dinheiro em alguma transação econômica, ou um simples produto de entretenimento, embora isso também faça parte do processo. Mercadoria é definida por um certo vínculo entre sujeito e objeto, um tipo muito específico de relação. Nesse arranjo, o objeto é completamente consumido pelo polo subjetivo, ao atender sempre a demanda de um sujeito desejante aguardando sua própria satisfação intelectual, psicológica, política, além de muitas outras. Não existe aqui excessos, crises, rupturas... a obra de arte, nesse cenário, não o desafia, não foge de você, muito menos te insulta. Da mesma forma que a lata de coca-cola, ela foi desenhada sob medida, na exata dimensão das suas necessidades... nem mais nem menos.
Dentro dessa categoria mercadológica não apenas filmes de super-herói fariam parte do esquema, como se o ponto principal fosse o entretenimento. Esse não é o critério que define o conceito adorniano de merdadoria, apesar dos comentários aleatórios nas redes sociais. Até mesmo filmes políticos, religiosos ou qualquer material artístico que se dissolve em uma subjetividade qualquer, fariam parte também da definição de Adorno. Isso não significa, por outro lado, que filmes mercadológicos são ruins ou deveriam ser proibidos. Eu amo artes desse tipo, e acredito que são excelentes, mas do ponto de vista estético, ao menos como definimos aqui, elas deixam a desejar. Em um mundo de algoritmos convenientes que oferecem a você tudo o que quer, na medida de seu desejo, além de bolhas ideológicas que passeiam pelas redes sociais, de vez em quando precisamos ser desafiados, precisamos de um mundo que resiste aos nossos voos paranoicos e narcisistas. Precisamos, nem que seja por alguns minutos, de um mundo sem algoritmos, sem uma estrutura conveniente, integrada, perfeita, um mundo onde meu EGO não está fundido com as expectativas da própria realidade. Caso contrário, não apenas a arte deixa de existir, mas até áreas distantes como a ciência também desaparecem.
O mundo não pode ser engolido por minha subjetividade, pelo menos não o tempo inteiro. De vez em quando preciso de clássicos como “A Terra Treme”, “Roma: Cidade Aberta”, “Luzes da Ribalta”, “Timecode”, ou os mais recentes como “Paterson”, “O farol”, “Tick tick boom”... filmes que desafiam minha expectativa. Narrativas que ultrapassam a estrutura dos três atos e seu estilo algorítmico de organização. Não significa, portanto, que esses filmes são melhores do que os outros, mas sim necessários. Por mais entediantes que sejam (Paterson é a história de um motorista de ônibus que escreve poesia... e só), ou até assustadores, como o “Farol”, eles são fundamentais. Essa é a definição adorniana de “arte legítima”... não necessariamente é uma arte que me agrada, que eu gosto, que amo, afinal, eu não sou o centro do universo, apesar do que a nossa democracia liberal nos diz.
Por essa e outras razões não sou fã de filmes políticos, já que muitos foram projetados para preencher os contornos de uma subjetividade qualquer. Não importa se de esquerda, com seu progressismo explícito, ou de direita, com valores como religião e família tão declarados, eles perdem a chance de frustrar, oferecendo ao seu público aquilo que já sabiam, sem excessos ou surpresas, a não ser o sentimento de uma satisfação preenchida. Os indivíduos saem do cinema como entraram, sem qualquer acréscimo, novidade ou mudança... nada!!!! Filmes políticos são muito previsíveis... apresentam personagens estereotipados, de maneira geral personificações de grupos e ideias, sem qualquer tipo de profundidade psicológica. Possuem um enredo linear e previsível, assim como os próprios elementos estéticos da obra se tornam simples pretextos de um compromisso ético de fundo. Claro que não vou trazer os nomes desses filmes aqui, justamente porque não quero causar desconforto. O objetivo do ensaio não é insultar ninguém, mas lembrar que o campo estético não é como uma coca-cola, não está ali por mim, muito menos é uma estrutura algorítmica conveniente.
A arte, enquanto um objeto autônomo, me ultrapassa, me invade, me insulta, me desafia. Como disse no começo, em um mundo onde todos permanecem tão certos de si, presos em suas próprias bolhas algorítmicas, uma arte autônoma pode ser um respiro necessário. Por isso sou apaixonado por obras como "memórias do subsolo", "o processo", "a história do olho", "a queda", e muitas e muitas outras... elas me lembram, ainda que de forma breve, o quanto o mundo não gira em torno de mim, ao colocar meus valores e categorias contra a parede. O anti-herói dostoievskiano é atrevido, escapadiço, complexo, da mesma maneira que filmes como “psicose” (a primeira versão de 1960) continuam a me surpreender. A arte legítima, segundo Adorno, não é mais inteligente, mais nobre ou mais incrível do que as outras. Ela é mais autônoma... esse é o critério. O objeto artístico ultrapassa as fronteiras do sujeito que o consome, o percebe, o interpreta.
A verdadeira arte, da mesma forma que a verdadeira pesquisa acadêmica, reconhece a autonomia do mundo e das circunstâncias, trazendo contingência para um espaço irritantemente perfeito demais, o que Adorno chamou de Identidade. Por isso que nem todo filme cult é uma obra legítima, da mesma forma que nem todo filme de entretenimento é uma mercadoria. Lembrem que o critério adorniano se encontra no vínculo entre o sujeito e o objeto. Quanto mais autônoma é a arte na minha frente, mais legítima ela é. O critério, portanto, está na fuga do subjetivismo capitalista, na recusa do sujeito liberal como centro da existência, como a medida de todas as coisas, inclusive do próprio processo de apreciação estética. Precisamos de uma arte que fure o bloqueio dos algoritmos, que nos frustre, nos insulte, nos desafie... caso contrário, não apenas estaremos reproduzindo a dinâmica interna do próprio capitalismo, como também a própria democracia vai estar em risco. E mais uma vez repito: em um mundo onde todos são tão seguros de si, em um espaço cheio de escolhas convenientes e filtradas pelo meu ego, é preciso que algo apareça e diga em voz alta: "vá tomar no cu sujeito prepotente. Você não é o centro do universo”!!! Sem dúvida, é doloroso ouvir uma frase assim, nesse nível de obscenidade, mas é necessário, principalmente nesse mundo tão algoritmizado.
Rerefência da imagem:
https://braziljournal.com/os-donos-de-cinema-nao-tem-medo-da-netflix
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