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ESQUERDA DARWINISTA, SERÁ QUE FAZ ALGUM SENTIDO?




Recentemente, através do colega Rangel, aqui do Soteroprosa, tive contato com um vídeo muito interessante da Filósofa Argentina Roxana Kreimer em uma resenha em seu canal no Youtube, sobre a obra de Peter Singer, “A esquerda Darwinista”, publicada em 1999. Peter Singer é um filósofo australiano, professor da Universidade de Princeton, muito famoso pela sua luta contra o especismo, prega uma realidade com mais altruísmo e cooperação e é bastante engajado com a causa animal e o vegetarianismo.


Infelizmente não consegui obter a obra original, apesar de buscar em vários sites, só a encontrei em bibliotecas fora do país, de forma que a leitura se tornou impossível por agora. No entanto, me debrucei sobre resenhas, análises e artigos publicados que citam o livro. E a conclusão que obtive foi: ainda temos uma compreensão muito errada da Evolução Biológica e isso é um tanto perigoso.


Resumindo a história do pensamento evolutivo, até meados do século XVIII prevaleceu o fixismo - uma ideia de que as espécies tinham sido criadas por um ser divino para um propósito e com uma essência fixa. Esse pensamento tinha base nas ideias de Aristóteles e Platão e se ajustava aos dogmas católicos da época. Tomás de Aquino, por exemplo, foi um dos responsáveis por escalonar as espécies em um tipo de ranking. No nível mais baixo estava o inferno, nos níveis seguintes estariam vermes, depois plantas, depois animais considerados “inferiores”. O mais alto nível era ocupado por Deus. No ranking, o ser humano constitui a categoria mais alta em comparação com os outros seres vivos, porém abaixo das divindades. Essa disposição é a famosa Scala Naturae, que traduz uma ideia de finalidade para a vida, que no caso, seria tornar-se divina.


No entanto, não é muito difícil de imaginar que a ideia de uma espécie fixa que não muda e que existe para um propósito específico se sustentaria por muito tempo. Há milênios antes de Cristo, várias sociedades humanas já domesticavam plantas, criavam variações de trigo, arroz e diversos outros vegetais. Desde o neolítico, o ser humano já domesticava animais e sabia que certos cruzamentos geravam as chamadas “raças”. Logo, se as espécies fossem de fato fixas, criadas para um princípio, seria impossível essa intervenção que já acompanhava a humanidade bem antes das ideias fixistas.


Do meio para o fim do século XVIII, naturalistas como Mauterpuis e Buffon já postulavam ideias de hereditariedade, variações de acordo com o meio, as quais que dialogavam muito com o que mais tarde viria a ser a famosa Seleção Natural de Darwin. Mas foi apenas no século XIX que a primeira ideia não fixista foi apresentada em um ensaio completo. Quem fez isso foi Jean-Baptiste Lamarck, aquele que estudamos no ensino médio por ter criado a Lei do Uso e do Desuso e a Herança dos Caracteres Adquiridos. Lamarck, para a época, quebrou esse paradigma de que as espécies não mudam. Ele explicou que essas mudanças ocorriam pelo uso ou desuso de determinada estrutura biológica. No clássico da girafa, segundo a lei de Lamarck ela teria um pescoço grande pelo esforço excessivo para alcançar as folhas das árvores mais altas. Esse pescoço maior seria uma característica que poderia ser passada para as gerações seguintes.


Apesar da fragilidade desse exemplo, o fato é que evolução não é sobre um ser vivo existir para um propósito ou ficar daquele jeito para sempre. Foi então que em 1861, Darwin organiza toda uma obra histórica que vai marcar o início do pensamento evolucionista, chamada “A Origem das Espécies”. Nela, são descritas as variações e as mudanças nos seres vivos, Darwin postula que tal mudança ocorre pela seleção natural. Ou seja, o ambiente seleciona indivíduos mais aptos, de forma que alguns conseguem reproduzir mais e deixar mais descendentes, passando suas características adiante. Mas quero deixar claro aqui que Darwin não foi o único que pensou sobre a seleção natural, diversos outros pensadores já estavam amadurecendo ideias nesse sentido. Inclusive a Seleção Natural é uma ideia atribuída também a Wallace, um naturalista contemporâneo de Darwin que chegou às mesmas conclusões.


O problema é que tempos depois, usaram-se as ideias da Seleção Natural para explicar as desigualdades humanas, através do “Darwinismo Social”-  um Frankenstein da direita para justificar sistemas de opressão. Dessa forma, muita gente quando pensa em Evolução Biológica, pensa em Darwin. E de Darwin, pensa no Darwinismo Social, que não tem nada a ver com a Evolução que estudamos em Biologia.


Evolução em Biologia postula que as espécies são mutáveis, não há espécie superior nem inferior, nem mais ou menos evoluído. Ao que tudo indica, todos os seres vivos da Terra são parentes e vieram de um mesmo ancestral que apareceu neste planeta há 3.5 milhões de anos. Desde que este primeiro ser vivo surgiu, a vida simplesmente evolui, e ainda temos muito o que aprender sobre como ela acontece.


Mas o fato é que nem Darwin foi o único pensador em Evolução, nem Seleção Natural é a única forma de Evolução conhecida. Temos diversas outras teorias como a seleção de grupos, a Teoria neutra, a Epigenética que nos explicam que existem várias maneiras que promovem a mudança nos seres vivos. Dessa forma, apesar de Darwin ser historicamente um dos grandes pensadores em Evolução, a Evolução não pode ser reduzida a ele. Outro ponto chave é que apesar da competição ser um fator que promove a evolução das espécies, ela também não é a única. Cultura, vida em grupo, até mesmo mudanças aleatórias no DNA podem ser fatores que promovem mudanças.

Aí vem a ideia da Esquerda Darwinista, proposta por Singer. Assim como toda a esquerda, ela busca reduzir o sofrimento dos vulneráveis, analisa a questão da bioética e ética animal. Porém... reconhece a “natureza” humana, partindo do princípio que é natural da biologia do ser humano ser competitivo e egoísta, sobretudo quando em cargos de poder. Nessa linha, para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, deveríamos considerar essa “essência” humana que não é tão legal.


Entendem o problema desse pensamento? Primeiro de tudo, o que é essa “natureza humana”? Biologicamente falando, se a evolução o tempo todo fala que as espécies mudam e se o próprio Darwin questiona o essencialismo, faz sentido falar em natureza humana? Fora que é um pensamento um pouco eurocentrado de sociedade, concordam? Ao entrar em contato com as escritas de Krenak e Munduruku, ou mesmo quando estudamos os sistemas de produção das comunidades quilombolas e de fundo de pasto nos interiores da Bahia, vemos muito da cooperação na humanidade.


Isso não quer dizer que eu não acredito que existam pessoas egoístas, competitivas nas sociedades humanas. Só não acho que sejamos isso por essência. Nem que todos são do mesmo jeito diante de uma natureza biológica. Eu acho que o ser humano é um misto de emoções individualistas e coletivas, somos complexos de forma que não dá para definir uma natureza humana universal. Pelo menos não de modo tão simplista.


Além disso, é uma ideia cientificamente falha quando pensamos em Evolução Biológica. E o pior, penso que Singer queria unir as Ciências Humanas com as Ciências Biológicas, mas são tantas questões polêmicas envolvidas numa ideia de Esquerda Darwinista, que me causa um nó no juízo.


Eu acredito sim que devemos pensar em produções científicas unificadas, trazendo debates multidisciplinares entre Biologia, Psicologia, Antropologia, Filosofia e Sociologia. Porém, estudos como esses devem ser geridos na diversidade, com muita gente pensando junto. Isso não será obra de uma só cabeça, escrita por uma só mão iluminada.


Se queremos uma teoria de esquerda que pense a cooperação e a redução das desigualdades nesta perspectiva multidisciplinar, devemos fazer a cooperação acontecer na nossa prática científica. Deixar o ego de lado, escutar os colegas, estar na condição de aprendiz e fazer junto. Isso não será um estudo de um sobrenome, será um estudo de múltiplos autores. Mas quem está pronto para produzir uma Ciência dessa forma? Singer tampouco esteve ao propor a esquerda darwinista.


A propósito, essa esquerda se coloca como diferente da esquerda utópica do século 19 por evitar o otimismo excessivo sobre a capacidade de transformação do ser humano, sem negar sua “natureza”, porém sem excluir sua capacidade de mudar e melhorar. A perspectiva de “esquerda darwinista” de Singer não acredita no fim dos conflitos humanos e prega que as desigualdades não são apenas produtos da opressão social. Se coloca numa perspectiva mais realista, mais pé no chão sobre o desenvolvimento de sistemas humanos mais cooperativos.


Mas, eu te pergunto, caro leitor, precisamos mesmo da criação de uma esquerda darwiniana para encarar a sociedade com mais pé no chão? Já não se faz isso nos debates e nas análises de conjuntura políticas? Vejo que os pensadores de esquerda já têm evoluído há bastante tempo em relação ao “realismo das ações e otimismo das ideias”. Dito isso, “esquerda darwinista” parece aqui uma necessidade constante que nós cientistas temos de querer inventar a roda, de estar na ênfase, “olhe, eu criei isso”.


Acredito que misturar Darwin desse jeito problemático na esquerda só tende a bagunçar o negócio. Já temos categorias demais, e esta, acho totalmente desnecessária. Vejo que o caminho é outro, e mais coletivo. Melhoraremos como esquerda no campo acadêmico quando tirarmos o peso dos sobrenomes, e passarmos a valorizar nossas ideias em grupo.


Tenho me dedicado a estudar sistemas cooperativos na natureza, nós mesmos somos um pouco disso. Nós só existimos em associação com uma porção de bactérias, e sem elas morremos. Sem nós, elas também morrem. Em Biologia, chamamos esse tipo de interação de Holobiose, por consequência, somos holobiontes. Doolittle & Booth (2017) descrevem esse sistema com a seguinte frase “É sobre o som, não sobre o cantor”.


Agora, queridos companheiros progressista, devolvo o questionamento, quando vamos deixar de nos preocupar apenas em ser cantores, para passar a tocar a música dos novos tempos?


Referências:

Campos-da-Paz, R., & de Pinna, M. (2021). O pensamento evolutivo antes de Darwin. Genética na Escola, 16(2), 388-419.

Doolittle, W. F., & Booth, A. (2017). It’s the song, not the singer: an exploration of holobiosis and evolutionary theory. Biology & Philosophy, 32, 5-24.

Farré, J. A. (2000). RESEÑA de: Singer, Peter. Una izquierda darwiniana: política, evolución y cooperación. Barcelona: Crítica, 2000. Espacio Tiempo y Forma. Serie V, Historia Contemporánea, (13).

Kreimer, Roxana. ¿Por qué la IZQUIERDA y las CIENCIAS SOCIALES RECHAZAN la BIOLOGÍA?Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=pd9ywKoOlWI

Strauss, A., & Waizbort, R. (2008). Sob o signo de Darwin? Sobre o mau uso de uma quimera. Revista brasileira de ciências sociais, 23, 125-134.

Waring, T. M., Kline Ann, M., Brooks, J. S., Goff, S. H., Gowdy, J., Janssen, M. A.,& Jacquet, J. (2015). A multilevel evolutionary framework for sustainability analysis. Ecology and Society, 20(2).

 

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